Sonhos doces à mesa

As melhores receitas de culinária são aquelas que estão associadas a momentos vividos em família, nas memórias e tradições mais antigas e, que na maioria, quase resultam na perfeição e sabem porquê? Porque são feitas com alma e coração, têm um gosto diferente e nunca se esquecem no tempo.

Seguindo as palavras de Miguel Esteves Cardoso, nos seus conhecidos ensaios e crónicas no Diário de Notícias (2004): “os melhores petiscos são aqueles que não podem ser comprados – por muito dinheiro ou amor que se tenha – mas somente adquiridos por ter nascido e vivido num determinado lugar; por ser filho, sobrinho ou compadre de determinadas pessoas”. Neste âmbito, não poderia deixar de compartilhar o mesmo pensamento para vos trazer hoje uma breve história que é uma deliciosa tradição: sonhos doces à mesa, ou melhor, as farófias da D.ª Zita, minha saudosa mãe que era uma inspiração neste doce e sobremesa na família.

As farófias são uma sobremesa que tem a sua origem histórica anterior ao século XVIII, não reserva grandes segredos na preparação, basta seguir a lista de ingredientes, mas o doce inesquecível que se derrete nas papilas gustativas de qualquer comum mortal, combina bem com a subtileza de um creme suave e fino que mistura-se com as claras  em castelo, cozidas em leite magro, com limão e sem esquecer a canela. Duas texturas que acomodam-se numa sobremesa que diria quase levíssima como as nuvens, que eu designava na altura dos meus 8 anos de idade e, que a minha mãe me dizia que eram sonhos doces, porque todos na família sonhavam e salivavam muito por esta sobremesa tradicional de família.

Em retrospetiva, esta viagem de memórias acompanha-me, tantas vezes na minha vida, e o sabor da canela imbuído no creme das claras é algo que tenho tão presente como se fosse hoje e, principalmente os aromas que “dançavam”, espalhados na cozinha e a visão  nítida como se fosse hoje, de ver a minha mãe a fazer o doce em ocasiões especiais de família como os: aniversários, Páscoa e Natal.

Não esqueço, contudo, o prazer que a D. Zita tinha em seguir quase à risca, as receitas da Maria de Lourdes Modesto, na sua icónica obra “Cozinha Tradicional Portuguesa” que apresentava as farófias preparadas de forma diferente, à moda da região da Estremadura, em que o creme é feito com as gemas e é ligeiramente engrossado com um pouco de farinha de Maizena – uma sobremesa com maior peso calórico.

A D.ª Zita, carinhosamente tratada pelos amigos e família, sempre adotou uma versão própria da receita de farófias e fazia esta sobremesa entre outras, de forma muito generosa e, diria até, paciente que tanto eu, como a minha irmã, aguardávamos sempre com grande expectativa durante o ano, sobretudo em momentos de festa.

Quando penso nas farófias, associo a imagem da minha mãe, com toda a paciência e tranquilidade de fazer este doce que ela “acarinhava” como fosse uma filha. Segundo ela dizia: “ estas farófias têm que sair bem e estarem no ponto”.

Agora, está na hora de passar à ação e contar-vos como preparar as farófias da D. Zita ou sonhos doces:

Ingredientes

  • Leite magro (em substituição do leite normal)  – 7 dl
  • Gotas de essência de baunilha – 3 gotas
  • limão (casca)
  • Pau de canela -1 Und
  • Sal fino 1 – 1 colher de café
  • Ovos (tamanho S) – 5 Unds
  • Mel (tipo rosmaninho em substituição do açúcar) – 3 colheres de sopa
  • Amido de milho – 1 colher de sopa
  • Canela em pó a gosto (q.b.)

Modo de Preparação

Passo 1 – Colocar ao lume um tacho com o leite, a essência de baunilha, a casca do limão, o pau de canela e deixar levantar fervura

Passo 2 – Separar as gemas das claras

Passo 3 – Bater as claras em castelo com o sal e quando começarem a fazer espuma, juntar em fio uma colher de sopa de mel e continuar a bater até estarem bem firmes

Passo 4 – Quando o leite começar a ferver, baixar o lume e deitar porções de claras no tacho, deixando-as cozer cerca de 2 a 3 minutos

Passo 5 – Retirar com uma escumadeira e colocar  numa taça

Passo 6 – No final da cozedura, é preciso coar o leite por um passador de rede fina para um tacho

Passo 7 – Misturar as gemas com o restante mel e o amido de milho, continuar a mexer e deitar um fio no leite, mexendo sempre

Passo 8 – Levar a mistura de leite ao lume até engrossar

Passo 9 – Regar as farófias com este creme e polvilhar com canela em pó

A sobremesa está pronta a servir! Este é o momento por todos esperado de saborear o que foi preparado e apreciar a ocasião como única e especial.

Afinal, preparar uma sobremesa ou qualquer prato, é acima de tudo, um ato de amor e de partilha com os outros, que é, na minha opinião, a melhor parte destes momentos tradicionais em família.

A D. Zita já não está, infelizmente entre nós, para ver os nossos rostos de satisfação depois de comermos e saborearmos estas farófias, mas onde estiver, vai estar a sorrir e pensar que deixou-nos um legado de bonitas memórias que não se esgotam, nem no paladar, nem no pensamento.

Vamos experimentar os sonhos doces à mesa?



Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico”

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