O Papa Francisco, sempre na linha da frente e mostrando estar ao lado da secularidade, pronunciou-se, esta semana sobre um assunto muito importante: o aborto. Sendo ele o chefe da Igreja Católica, a sua voz será ouvida por milhões de pessoas. E que disse ele? Aconselhou os padres a estarem preparados para perdoar as mulheres que os praticam. Esta atitude revolucionária poderá ter um impacto muito forte na comunidade e suscitar opiniões muito polémicas.
Explica ele que o aborto é um pecado global. O que quer isto dizer? Que é um pecado cometido pela mulher, pelos médicos, pelos enfermeiros e todos os profissionais de saúde. Não há menção ao homem e as mulheres não engravidam sozinhas. Não estamos a falar nem de inseminação artificial, nem de outra técnica de procriação assistida.
Este ano religioso é dedicado ao tema da piedade e, como tal, esta nova atitude só poderá ser eficaz se a mulher se mostrar arrependida do seu acto. Continua a não existir homem algum. Os padres devem ouvi-las e terem a capacidade de as perdoar do seu procedimento menos correcto. As mulheres, nunca os homens.
Numa carta apostólica, intitulada “Misericordia et Miseria” estão as linhas mestras deste perdão inédito, ressalvando, no entanto, que os sacerdotes estão no seu direito de absolver ou não as respectivas pecadoras. Entenda-se pecadoras como as mulheres que fizeram um aborto e se arrependeram. As outras, as que não nutram esse sentimento antagónico, não serão perdoadas.
Mulheres, sempre mulheres. Não há nem uma única referência aos homens. É sabido que gravidez resulta da união de duas células, a masculina e a feminina. Nos seres humanos é a junção de um espermatozoide e um óvulo que dará origem ao zigoto e, posteriormente, ao embrião. As mulheres só possuem a sua célula, a sua gónada e não são auto-suficientes neste caso.
Como pode um homem, que supostamente é inexperiente nesta matéria, dar a sua opinião sobre um assunto que desconhece totalmente? Um homem que nunca poderá engravidar, que nunca poderá sentir, que nunca ficará perante o dilema da atitude que qualquer mulher quer evitar? Que sabe ele disso? Os homens estão tão longe de entenderem o que se possa sentir!
Quando uma mulher engravida o corpo altera-se, sente-se uma mutação e saber que existe alguém dentro de nós faz toda a diferença. Estabelece-se uma relação única e a comunicação nunca deixa de acontecer. Mas as coisas nem sempre acontecem como nos filmes e nos contos. A realidade é cruel e não contempla romantismos nem romances. Grande parte das vezes essa gravidez não pode chegar ao fim.
É aqui que tudo se complica e a emoção se adensa. Um filho é uma esperança, um desejo, uma continuidade, um prolongamento. Deve ser desejado, amado e ponderado. É um novo ser humano e não se cria com peluches e doces. Exige dedicação, paciência e tanto de cada um que nem sempre se consegue estar à altura da tarefa. Ninguém nasce ensinado, é certo, mas as lições de vida são aprendidas a velocidades diferentes.
No entanto existem circunstâncias que não permitem que esse desejo se concretize de modo aprazível e, em várias, não pode mesmo acontecer. Não interessa mencionar os motivos, as várias razões que são inúmeras e individuais, elas existem e são reais. É uma decisão muito dolorosa. É perder alguém antes de ser. É uma cicatriz tão forte que nunca sara. É um luto que permanece toda uma vida.
Falar do assunto será sempre difícil e complicado e o sentimento de culpa não vai desaparecer. Nenhuma terapia terá o condão de a amenizar, antes pelo contrário, repisa em tudo o que aconteceu. E é a mulher que sente, é o seu corpo que deixa de albergar algo de precioso, que se despede de quem ainda nem conheceu.
Como se atreve esse senhor e outros que tais a falarem sobre o assunto? Que sabem eles? Nada! O corpo é feminino e a decisão é de quem o possui. Obviamente que, na maior parte dos casos, é tomada em conjunto e ainda bem. O fardo é tão pesado que partilhado com o parceiro alivia um pouco. Alivia mas não desaparece. Nunca.
Dia 25 de Novembro é o Dia Internacional para a Eliminação da Violência contra as Mulheres. Condenar as mulheres, porque praticaram um aborto é um acto abusivo e de uma violência extrema. Ninguém quer que ninguém seja infeliz, que não tenha condições, que passe uma vida inteira a carpir. É desumano. Queremos humanidade. A violência psicológica é perigosa porque parece que não o é mas tem uma intensidade ainda mais forte que a física.
Em Portugal, durante anos, a prática do aborto era considerada um crime e a penalização era enorme. Sofria a mulher 3 vezes. Primeira porque o tinha feito, segunda porque era julgada por uma situação da sua vida privada, aquela que só lhe dizia respeito e terceira porque a dor instalada nunca a abandonaria. Ainda arrisco a mencionar uma quarta: a exposição pública e a consequente vergonha.
Era apontada a dedo apesar de tantas outras terem vivido a mesma situação, pasme-se, apontavam o dedo à sua igual, àquela que deveria ser apoiada e não humilhada na praça pública. Quanto aos homens, que escapam sempre impunes destes casos, as reacções não eram tão diferentes. Ameaças, insultos e outras “pérolas” que deixavam marcas indeléveis.
Por isso com que direito é que os padres se debruçam sobre este assunto? Não estarão a entrar num campo minado e perigoso? Estão nitidamente a intrometer-se na vida de cada um e essa não é uma atitude nada cristã. Não apregoam que se deve amar o próximo? As mulheres são o próximo, os seres que estão mesmo ali, à sua frente. Amem-nas como deve de ser.
Como as condenar? De quê? De serem conscientes e sofredoras? De terem tido a lucidez para tomar uma decisão difícil? De serem inteligentes? Não apregoam o perdão dos pecados? Quer então dizer que os pecados têm hierarquias? Uns são mais pecados do que os outros? Não se entende.
Os homens, o outro lado da questão, são os juízes, nunca os defensores. São os acusadores de uma parte que também foi sua. Esqueceram-se? Não é justo, não está correcto. A vida não prima pela igualdade e concordância, é uma verdade mas está nas nossas mãos lutar por uma sociedade que seja respeitadora e que cumpra os seus preceitos.
O artigo 13 da Constituição menciona a igualdade perante a lei. Somos todos culpados mas também somos inocentes. Saber perdoar a quem nos ofendeu é uma dádiva, um dom maior. Do mesmo modo somos impelidos a pensar o que são crimes e o que assim é considerado. A meu ver o aborto não é nem nunca poderá ser considerado um crime. É o último recurso, aquele que já não apresenta a luz ao fundo do túnel. E não é nada bom.
Num mero exercício, de tipo religioso e, entrando num campo que ainda motiva milhões de seres, estou perfeitamente à vontade para me manifestar sobre o Papa e a sua carta apostólica. Duvido que os católicos a leiam e se o fizerem continuo a duvidar que a entendam na sua totalidade. Eu, enquanto ser humano e dotada de faculdades mentais, expresso a minha opinião: perdoai-lhe porque ele não sabe o que diz.