País em crise. Índices de desemprego crescem entre jovens e adultos. Trabalhadores qualificados emigram e tentam a vida em outros países. Outros não têm essa hipótese e ficam em Portugal, num longo calvário à procura de emprego que não seja precário. Hoje em dia, os indicadores económicos mostram alguns sinais de estabilidade, ainda que com crescimento anémico, mas o que vou tratar aqui é de uma realidade não traduzível por números, aquela das pessoas que pagam as contas, mas não têm dinheiro para comer… e têm vergonha de o admitir.
Em vários casos, são pessoas que levavam uma vida decente. Tinham emprego, casa, carro, acesso a bens de consumo, viajavam com frequência ou tinham negócio próprio com lucros consideráveis. No entanto, a guinada económica negativa e as reviravoltas da vida tiraram-lhes tudo, deixando apenas as dívidas, as contas por pagar e o embaraço de expor a gravidade da situação em que se encontram. Famílias antes estáveis, hoje convivem com a indignidade de ter que escolher entre alimentar-se e viver às escuras ou ter energia em casa, mas passar dias e dias com fome. O aperto no peito de ter que decidir qual a conta que não vai ser paga neste mês.
O medo de ser julgado de forma negativa por amigos e conhecidos leva muitas dessas pessoas a tentar aguentar-se por conta própria, mesmo quando a ajuda se revela necessária. Tal situação acontece porque essas famílias estavam acostumadas a tratar das suas necessidades com a própria renda ou com os apoios que recebiam. Quando o dinheiro acaba, quando as cobranças começam a pesar no bolso e na alma, muitos fecham-se em casa, tentam vender móveis e outros bens que julgam desnecessários para tentar pagar as dívidas e dar de comer aos filhos. Tudo para que os outros não vejam a gravidade da penúria.
Lembro que sentia um pouco desse medo por não ter dinheiro para ir às saídas com amigos nos tempos de universidade. Não passei fome, mas tive bolsas de estudo negadas por duas vezes e contava com ajuda familiar para pagar as propinas (atrasadas) e dar conta das restantes despesas do dia a dia. Contava cada cêntimo que gastava e sentia tremendo desconforto com a ideia de ir a jantares e festas académicas mesmo sem ter dinheiro para contribuir, apesar da inesgotável boa vontade dos meus amigos de curso, que me queriam perto. Eu mesmo não gosto de que me paguem as coisas, pois sinto-me em dívida não só financeira, mas moral com quem me empresta, mesmo que seja um mísero euro.
Vêm-me à memória também certas ocasiões no inverno português, em que via pessoas reunidas ao lado da estação de São Bento, ou em uma praça cujo nome me escapa, no Porto, para comer um prato de sopa. Em meio a um frio desolador, e inclusive acompanhado por amigos que se juntavam à fila, foi nessas situações que vi com meus próprios olhos: “há gente que sai à rua neste frio para pedir um simples jantar…” Foi aí que me dei conta de um lado dessa faceta nefasta que ainda existe na sociedade portuguesa. Os desfavorecidos já se acostumaram com a própria miséria, mas para aqueles que pertenciam à chamada “classe média”, é uma realidade que até então lhes era inimaginável.
Outro ponto por detrás dessa relutância em pedir ajuda seria o esforço por tentar manter um suposto estatuto, criado pelas famílias de classe média com os bens materiais que possuíam. Ter casa, roupas decentes, comida na mesa, carro, televisão a cabo, internet, conseguir colocar os filhos em um bom colégio ou universidade… ter acesso a tudo isso acabava por construir uma imagem de família feliz e estável, que naturalmente se projecta para o exterior. É mais ou menos como olhar para o que se tem e dizer “Olhem só, a nossa vida vai às mil maravilhas!”. No entanto, mesmo com os problemas a acumularem-se e quando o dinheiro não chega mais para cobrir as despesas, as famílias preferem recorrer ao endividamento a pedir ajuda, num esforço de tentar preservar essa imagem construída ao longo de tanto tempo.
A insistência em não abrir o jogo e em carregar o peso das dificuldades até as últimas consequências antes de procurar ajuda é um problema antigo, mas que as organizações de caridade têm tentado combater com todas as forças. Não é incomum ler notícias em que coordenadores e lideranças de entidades como a Cáritas e os bancos alimentares apelavam ao bom senso daqueles que passam por dificuldades: “Não esperem até tudo desmoronar-se à vossa volta para pedirem ajuda. Quanto mais cedo o fizerem, melhor para vós.” Apesar de dizerem (com razão) que não é vergonha nenhuma pedir ajuda quando se está em dificuldades, há outro aspecto que explica essa relutância: o sentimento de fracasso.
O indivíduo ou a família necessitada faz por tentar encarar os problemas sozinhos por pensar que quem pede ajuda é digno de pena ou é um falhado, sujeito ao ostracismo da sociedade. “Como assim não consigo mais resolver as coisas sozinho?! Sempre consegui tratar de tudo e dar o sustento a meus filhos, não é agora que hei de pedir ajuda!”, pode ser um exemplo de pensamento nesse sentido. O que é difícil de ver nesses momentos é que não é em todas as situações que é possível resolver todos os problemas sozinho ou apenas em família, especialmente problemas relacionados a dívidas, perda de emprego ou outras coisas que fogem ao controlo da esfera familiar.
Traduzo-o em palavras pois também partilho um pouco dessa mentalidade de busca pela autossuficiência. Por morar sozinho, dou extrema importância a gerir minhas finanças de forma a ter o suficiente e não precisar que ninguém me empreste, procurando tentar dar conta sozinho dos problemas e das necessidades que aparecem. Até agora tem dado certo, mas ao mesmo tempo sei que não consigo resolver tudo. O aprendizado da vida é longo e árduo, mas a lição que tiro é que é sempre bom reflectir, identificar a hora certa de pedir ajuda, e acima de tudo saber com quem contar, até para as coisas mais simples. Não nascemos para andar sempre sozinhos.
Eis que chegamos ao ponto crucial: como combater essa vergonha? O primeiro passo para lidar com essa realidade é reconhecer que ela existe. Abrir o jogo e falar sobre o que se passa. Confesso que não consigo imaginar o que vai na cabeça de quem passa por uma situação tão crítica e tenho em consideração que é difícil não ter medo do possível estigma social a que a família pode ficar sujeita ao expor essa nova realidade de pobreza, mas é preciso arrancar esse suspiro e dizer “precisamos de ajuda”.
Do reconhecimento e da expressão dessa necessidade é que as famílias devem procurar quem as apoie. Desde familiares ou amigos que lhes possam oferecer uma refeição, até a procura em organizações de caridade, dispostas a ajudar com doações de comida, roupas e até na criação de pequenos negócios próprios ou na renegociação de dívidas pendentes, não deve faltar quem possa ajudar. Uma qualidade que posso reconhecer no povo português é a solidariedade, a capacidade de passar adiante o que não se quer mais e de dar a quem precisa. Isso é fundamental para ajudar a tirar uma família da pobreza.