– Veste o casaco, filha, que lá fora está frio. E fazia ao gesto, auxiliando com o braço. Depois abotoava o casaco e colocava o capuz na cabeça. Resquícios árabes que quase ninguém sabe. E abraçava a menina de modo ternurento, como só as mães sabem fazer. A rapariga era de idade indefinida, alta, com um corpo desengonçado e desproporcionado, uma testa demasiado saliente, olhos esbugalhados e uns óculos com umas lentes de fundo garrafal. Caminhava com passinhos de velha apesar dos seus poucos quilos permitirem mais velocidade. Os outros olhavam e viam uma adolescente/jovem adulta diferente, deficiente. Tentou articular umas palavras, que a mãe entendeu, mas eram códigos indecifráveis para quem não os conhecia. A mãe abriu o chapéu de chuva e desceram as escadas do hospital em direcção ao táxi.
– Pai não saia daqui que eu venho já, ouviu? Não saia daqui que eu vou perguntar se ainda demora muito. Levantou-se deixando o velhote assustado por se encontrar sozinho. Vestia umas calças de pijama às riscas, tão típico de certas instituições e um casaco que estava fechado até ao topo. Calçava uns chinelos, muito puídos, que os pés já arrastavam para avançar no caminho. Olhava aflito, à volta e sentia-se perdido. É triste e irreversível a volta que a vida dá. Um filho que cuida de um pai depois de ter sido o contrário. Que brincadeiras fizeram? Onde foram os dois? De que falavam? Agora quase que não se percebia a sua voz. Está quase. É a seguir. A Dr.ª já vai chamar. Não tem que ter vergonha só porque é uma senhora. Eu vou consigo pai. Tem de mostrar tudo. Chamaram o nome do velhote. Levantou-se e caminhou, arrastando-se, apoiado no filho, até ao gabinete referido.
– Tenho que ir à casa de banho, urgentemente. Outra vez? Claro! Não vês que o menino empurra a bexiga? Exibe uma barriga de cerca de 8 meses e um ar tão gaiato que parecia criminoso estar grávida. Estava pesada, mas as pernas finas andavam com desenvoltura. Ele riu, como um miúdo que foi apanhado numa brincadeira. É o dia todo nisto e ainda falta um mês. Não sei como é que aguenta e sempre bem-disposta. Vamos ter um rapaz. Eu até preferia uma menina, mas é saudável e isso é que interessa. Ainda não decidimos o nome. Ela quer Honorato, já viu? Que disparate de nome. É das hormonas. Voltou a rir. Ela voltou e sentou-se. Chamaram o nome dela. O pai ficou ansioso. Dali a pouco a médica veio chamá-lo. Então? Entra filho que a criança também é tua. Estás preparado? Parece que vai nascer antes do tempo. Sabes o que fazer? Ele, envergonhado, abanava a cabeça sem se perceber se era um sim ou um não. A porta fechou-se e a consulta continuou. Uma nova vida estava a chegar.
– Quem está para o Dr. Fulano? Quero todas as presenças que depois já chamo por horas. Só se levantaram senhoras. Ou era ginecologia ou senologia. Ainda há poucos especialistas desta disciplina e tantas doentes. Já chamaram para o Dr. Fulano? Sim, já chamei. Dê-me o papel, se faz favor. E numa voz sonora, mas delicada, chamou várias senhoras. Era a consulta de senologia, que muitas desconheciam que existia. A maior parte estava acompanhada, mas havia uma mulher sozinha que transmitia calma. Não sabe o que é a senologia? É a consulta da mama, vem da palavra seio. Seio, senologia. Ah! Exclamava a senhora muito admirada. E a senhora vai à consulta porquê? Eu tenho uns exames para o Dr. ver, mas sei que é cancro da mama. O que tiver que ser será. Estou preparada. E veio sozinha? Que diferença faz? Já sei o que vou ouvir. Saiu uma senhora de lágrimas nos olhos. Talvez pensasse que não era nada. Acontece muito. Pensar que só acontece aos outros. Não é verdade. Chamaram-na. Demorou uma eternidade. Quando voltou vinha carregada de papéis e ar descontraído. Vem com boa cara. Não é nada, pois não? É pois! Vou ser internada. Vai ser rápido e ainda bem. Boa sorte para si, minha querida.
– Está quieto Cristiano. Não paras quieto e depois é isto que se vê. O rapaz pulava e atirava-se para o chão. Tinha um braço engessado, mas isso não era impedimento para a brincadeira. Caiu do escorrega, em cima do braço. Parecia um bezerro desmamado, mas continuou nas parvoeiras. Se eu soubesse que ia ser assim ele nunca tinha nascido. É uma peste! Não diga isso! Um filho é um tesouro. Este é um roubo, é o que é. É só gastar dinheiro com ele e dores de cabeça. Ele é tão bonito! Saiu ao pai. E ria muito satisfeita. O pai não lhe dá umas palmadas quando é preciso? O pai? Sei lá eu onde anda. Pisgou-se. Já estava à espera. Homens são só para gozar, não são para trabalhar. Isso é para as mulheres. Cristiano Leandro anda cá à mãe já!
– Como te sentes? Bem, dito numa voz firme, mas sem qualquer entoação. Cara muito inchada, olheiras profundas e careca. O corpo está desarranjado, mas vai passar. Ela sabe isso e não se importa. Hoje demorou mais tempo. Tiveram que fazer as análises, eu tinha-te dito. Queres comer? Não sei se consigo. O pai tira um bolo duma embalagem e dá-lhe um pedaço. Ela coloca na boca, mas cospe-o. Não consigo. Sabe-me tudo mal. Mais logo, talvez. E anda de um lado para o outro, como se tivesse bicho carpinteiro. É a maneira que ela encontra de exorcizar os seus fantasmas. Tenho calor. Toma o casaco. O pai tem os olhos tristes e amargurados. Tão nova e já a fazer quimioterapia. Aguenta-se, sabia? Tem uma força interior descomunal. Não sei onde a vai buscar. Ela dá-lhe o casaco. A camisola branca tem estampado: Have a nice day!