“Existe ainda um longo caminho a percorrer para que as vítimas do sexo masculino não se sintam estigmatizadas, não sintam medo e vergonha e que não evitem procurar apoio, com medo de serem desacreditados e humilhados por familiares e amigos — mas também por instituições policiais e judiciais, que ainda olham para as vítimas de violência doméstica do sexo masculino como fracos”, diz Raquel Segadães, da APAV.
Acrescenta também que, à semelhança das mulheres, os homens que são vítimas de Violência Doméstica “receiam deixar o relacionamento e mantêm a esperança, muitas vezes vã, de que o outro cesse os comportamentos violentos”, embora em 2021 a APAV tenha registado aumento da procura de apoio por parte de vítimas de género masculino. Tendo sido 1842 nesse ano, correspondendo a 35 por semana e 5 por dia que procuram apoio junto da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), de acordo com o relatório anual publicado pela instituição, correspondendo a 19,6% das vítimas de 2021. Aumentando também o número de vítimas, cerca de 1%, comparativamente a 2019.
O perfil traçado indica que as vítimas são predominantemente adultas (56.7%) com idade média de 36 anos.
Um Homem não sofre de Violência Doméstica
É sublinhada a importância de apoio profissional e especializado, para que seja ultrapassado o possível trauma associado à violência, não esquecendo a “extrema importância de redes de apoio, constituídas por familiares ou amigos” das vítimas.
A sociedade ainda tem tendência, avança Raquel Segadães, olhar para os homens vítimas de violência doméstica “com desconfiança, porque alguns agressores tendem a fazer-se passar por vítimas e porque ainda existe a cultura de que o homem deve ser soberano no relacionamento. Todos os tipos de violência em contexto de uma relação afetiva têm um grande impacto na vítima e na sua relação consigo mesma e com os outros. Poderá haver quem reaja de forma diferente a um tipo de violência do que a outras, mas nenhuma passa incólume.”
Havendo espaço para melhorar a legislação, “quando olhamos para o que está a falhar no sistema, não apontamos desde logo para o quadro legal. A nossa lei é bastante completa e fornece um conjunto de ferramentas bastante simples, mas há uma clara deficiência na forma como é operacionalizada. É necessário melhorar a forma como a lei é implementada, pois algumas melhorias, até aparentemente pequenas, podem vir a evitar consequências graves em casos concretos.”
Várias são as campanhas que têm vindo a ser criadas pela Associação, de forma a sensibilizar a sociedade para esta realidade, assumindo que “vamos mudar de conversa: os homens também são vítimas doméstica. Falar é sinal de força.” Sendo, no entanto, necessário cada cidadão estar atento ao seu redor, com vista a estar informado, alerta e denunciar às autoridades sempre que e quando necessário.
Sugere que “poderá ainda ser positiva a partilha da experiência, pensamentos e sentimentos da vítima com uma pessoa próxima (um/a familiar, um/a amigo/a). Deverá igualmente equacionar o recurso a ajuda profissional em entidades como a APAV, onde é prestado apoio psicológico, jurídico e social.”
A Violência Doméstica no Masculino
As mulheres são as vítimas predominantes no crime de violência doméstica, sendo este o crime mais cometido em Portugal. No entanto, é transversal a ambos os géneros.
Ângelo Fernandes fundou a associação Quebrar o Silêncio em 2017, que visa dar “apoio especializado a homens sobreviventes de violência e abuso sexual” e “iniciar o diálogo saudável e informativo sobre violência sexual contra homens ou rapazes, sem medos ou preconceitos.”
O fundador tinha 11 anos, quando foi abusado sexualmente, pela primeira vez, por um amigo da família. Durante 20 anos guardou “em silêncio este peso, vergonha, culpa e nojo.”
São disponibilizados serviços de acompanhamento psicológico, grupos de ajuda mútua, apoio entre pares e uma linha de apoio. Todos gratuitos para os homens e jovens que procurem a associação. Fazem também acções de formação e sensibilização em escolas e/ou empresas, com vista a, entre outras, promover a prevenção de violência e abuso sexual.
“1 em cada 6 homens é vítima de violência sexual antes dos 18 anos.”
Em todo o país, existe, num local sigiloso, uma Casa de abrigo para homens, estando inserida na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica.
O silêncio da Violência Doméstica
O Pai de Joana*
“Fui visitá-lo, durante a pandemia, e estava sentado na poltrona. Quase imóvel e muito assustado. Pouco falava e achei que estava assim por não querer sair de casa, para não ficar infectado”, relata Joana*, sobre o dia em que voltou a estar com o pai, após várias restrições e recomendações do Governo.
O irmão ficou desempregado, à semelhança de tantos outros, e isso fez com a que disponibilidade financeira reduzisse ao ponto de voltar para casa dos pais. As visitas de Joana passaram a ser regulares, com o levantar das restrições e, sempre que possível, falava com o irmão, para saber como estava tudo com as mudanças e adaptação. “Ia dizendo que corria bem, sem desacatos e que ajudava naquilo que podia. Era ele que fazia as compras da alimentação.”
O pai, que era alegre e bem-disposto, foi mudando aos poucos a postura, até ao dia em que, quando Joana* chega, o vê assustado. Ao perguntar ao irmão o que se passava, este disse-lhe que um dos amigos tinha falecido e isso estava a afectá-lo ao ponto de não querer falar com ninguém.
Nova visita e, de novo, o mesmo comportamento do pai. “Estaria a fazer o luto. Cada pessoa lida com isso à sua maneira. Não o importunei.” Com a chegada do tempo mais quente, as camisolas de manga comprida foram substituídas por t-shirts, deixando os braços do pai à mostra.
“Primeiro perguntei como se tinha magoado. Disse que caiu. E fiquei com a pulga atrás da orelha. Caindo dificilmente se fazem nódoas negras no interior dos braços. Falei com o meu irmão, para ver se sabia de alguma coisa. Não sabia de nada.”
O pai sempre trabalhou e, durante anos, foi o sustento da casa, para que a mãe ficasse a acompanhar Joana e o irmão, sem ter preocupações de maior. A matriarca começou a trabalhar nas limpezas, depois dos filhos saírem de casa. “É um lutador. Fez de tudo para que nada nos faltasse ou, se faltava, não demos conta”, disse emocionada. Foi com estranheza que viu o pai a ficar cada vez mais cabisbaixo. “Numa das vezes, estava sozinho em casa com a minha mãe”, revelou, “os braços estavam com mais nódoas negras e não podia ser de mais quedas.” Nesse dia, perguntou de novo o que se passava e “o mundo desabou. Não sei como descrever o que senti.” O irmão exercia violência psicológica e física com o pai, quando este não lhe dava o dinheiro que queria.
“Desde a primeira vez que o vi naquele estado, já estava a ser abusado. Nem sequer morreu nenhum amigo. Tudo manipulação do meu irmão.”
Ofensas verbais, chamando “nomes do mais ordinário que há”, dizendo que pegaria fogo à casa, para que todos morressem, até chegar aos murros, estalos e apertões nos braços e tronco, foi assim que o pai de Joana passou parte da pandemia, fruto da agressividade do filho.
Apresentaram queixa, mesmo com o pai a dizer que não valia a pena. “Um pai protege os filhos a todo o custo, não o julgo nem condeno por isso, mas sinto-me culpada por ter acreditado nas mentiras que me foram contadas.” O irmão vive actualmente com amigos e não tem qualquer contacto com os pais nem com Joana.
Diogo*
Diogo* conheceu o namorado no local de trabalho. “Ele era afável, adorado e querido por todos os colegas.” Trabalharam juntos cerca de um ano antes de iniciarem a relação que começou devagar. “Começámos por sair para beber café, de vez em quando. Depois as saídas passaram a ser quase todos os fins-de-semana ou sextas, a seguir dia de trabalho. E quando demos por isso, estávamos a namorar.”
Com receio que existissem consequências, optaram por não revelar aos colegas que a relação era mais do que profissional e optaram por manter tudo discreto. Opção essa que levou a que o namorado começasse a tratar Diogo de outra forma. “Nos primeiros seis meses, era tudo maravilhoso e ser escondido até trazia alguma adrenalina”, disse. A seguir a isso, começaram os insultos constantes.
“Tu não prestas para nada”, “por tua culpa, não ando feliz no trabalho”, “és um merdas”, “a decisão de esconder foi só tua”, “não sabes fazer nada bem feito”, foram alguns dos insultos que ouviu, durante cerca de dois anos, até colocar um ponto final na relação.
Nunca apresentou queixa nem conversou com os amigos sobre o que sofria em silêncio, porque “achava que não iam acreditar” no que lhes contaria. Afinal, o namorado era muito bem visto e adorado por todos. “Era a minha palavra contra a dele. Cheguei depois. E ir à polícia? Para quê? Como é que conseguia provar tudo o que ouvia?”
A pandemia veio aliviar os insultos, uma vez que, com o teletrabalho, cada um ficou em sua casa. Foi assim que foi ganhando coragem para terminar a relação que o abalou. “Sabia que ia ser difícil e que ele nem ia reagir bem, mas era disso que eu precisava.”
Começou por responder cada vez menos a telefonemas e mensagens. Comportamento esse que revelou o traço controlador do namorado. “Passou a enviar cada vez mais mensagens, a perguntar onde estava, com quem estava, qual a razão para não responder… e, com isso, mais insultos. Era rara a mensagem onde não me chamava nomes.” Comportamento esse que levou para o avanço do final da relação.
“O fim não foi bonito, de novo insultado, mas estou melhor sozinho. Decidi mudar de trabalho e dias antes de começar no outro local, acabei com tudo para não mais voltar. Bloqueei número, redes sociais,…” Optou por fazer “uma licença sabática” de relações amorosas e está sozinho, a morar com dois gatos.