Beautiful Boy – O desafio da parentalidade

Baseado nas memórias do livro do conceituado jornalista David Sheff (interpretado por Steve Carell, o eterno Michael Scott de ‘‘The Office”) e do seu filho Nic Sheff (que Timothéé Chalamet, de ”Dune” e ”Call me by your name” dá corpo), Beautiful Boy é um filme que me causou diversas sensações à medida que este se vai revelando. Essa montanha russa de sentimentos deve-se ao modo de como as cenas do filme estão montadas, pois não tem uma linha temporal contínua, como explicarei a posteriori.

Devido ao conhecimento empírico, confesso que tenho esta mania sempre que assisto a uma película: tento sempre prever e estar um passo à frente do que irá acontecer (mesmo assim muitas vezes sou surpreendido). Considero que conheço os clichés de Hollywood devido à quantidade de longas metragens que já visualizei. Muitas vezes, essa espécie de ansiedade não me permite deixar levar pela magia do cinema e pela sua beleza estética. Acabo por não aproveitar um filme como uma experiência imersiva e isso impede-me de desfrutar. Para efeitos ilustrativos, não há muito tempo, lembro-me do filme “Sozinho em casa” estar a passar na televisão. Nessa altura estava acompanhado por uma pessoa bastante terra-a-terra e mundana e o seu filho. Eu estava com uma atitude bastante blasée em relação ao filme, pois já o conhecia de cor e salteado. Mas essa pessoa, que também já devia ter visto inúmeras vezes, continuava a rir-se desmesuradamente com as partidas de Kevin, aproveitando para passar um bom serão com um filho, enquanto descrevia o que estava a ver. Simplesmente se deixou levar. Enfim, estas tentativas de prever impedem-me que esteja focado na cena presente do filme. Mais um comportamento que preciso de corrigir.

Ao visualizar as cenas inicias de “Beautiful Boy”, prevejo que se irá tratar de mais um filme em que a moral da história é “say no to drugs“. Felizmente, acabei por me surpreender, pois a temática do filme contém esse tema, mas transcende-o completamente. Apercebo-me que Nic tem um problema com o uso de metanfetaminas e que o seu pai tenta conhecer essa realidade através de conselho médico. “Know your enemy“. A vida não é não ter problemas. É ter problemas e resolvê-los! Essa atitude faz-me reflectir acerca de quantos pais não se interessam realmente pelo que os filhos fazem, seja de bom ou de mau, e preferem convidar a frustração e o desleixo a entrar do que a capacidade de ajudar e de ter esperança e fé.

No fundo, esta é uma história sobre a relação entre um pai e um filho. Os pais de Nic são divorciados e ele vive com David, a madrasta e os irmãos mais novos numa campestre com excelentes condições, a apelar ao bucolismo. Tem tudo para vingar na vida e ser feliz, pois a família consegue providenciar-lhe uma estrutura sólida e óptimas condições de vida. A mãe tem uma vida mais citadina, é mais distante e dispersa, havendo aqui um claro binómio entre pai-mãe e campo-cidade.

É através das analepses e prolepses deste drama que a história da adolescência de Nic e da sua intimidade com o pai vai sendo retratada. David tenta estimular o filho, ser compreensivo e nutrir empatia por ele ser daqueles pais que pressionam. Tenta ser uma figura presente e um veículo para que os ciclos de vida decorram de forma positiva, havendo uma transição benéfica e suave. Tenta, sobretudo, ser um aliado, não renegando qualquer atitude do filho, mas sim tentando compreender e ajudar da forma que acha melhor. O problema é que a vida e a parentalidade não trazem livro de receitas. ”Life is like a box os chocolates’‘, e muitas vezes passamos a vida à procura de respostas para sabermos onde é que erramos e as consequências que as nossas atitudes provocaram, quer em nós quer nos outros. Os pais podem ter intenções puras e pensar que têm tudo sob controlo e uma relação próxima o suficiente, mas por vezes os filhos acabam por manter segredos e filtrar o que revelam aos pais. As razões para não haver esta integridade plena são mais que muitas: medo de desiludir, pressão para agradar, etc. É tudo um complexo Freudiano. Estamos sempre a tentar compensar qualquer coisa.

Quanto a Nic, trata-se de um rapaz possuidor de um carácter e veia artística. Será que esse arquétipo é um factor que influencia os seus consumos? A realidade da sobriedade pode não bastar para este tipo de pessoas. Nic chega a referir que só se sentia pleno sob o efeito dos narcóticos. Na fase da ressaca, sentia o arrependimento e a auto-desilusão, expressando isso através da sua arte, com David a encontrar os seus desenhos mais tarde. Consciente do problema do filho e do seu potencial criativo, David acredita piamente de que o que Nic ”tem, irá voltar a encontrar”.

São retratados vários ciclos, repletos de intensidade cinematográfica: a entrada na Universidade, a revolta contra o pai – “não sou uma criação tua para tu moldares!”, a paixão, a relação com os seus irmãos, a partilha de momentos com o pai na infância, internamentos em clínicas e casas de reabilitação e várias recaídas relacionadas com o consumo de drogas. Do ponto de vista do espectador, existe uma espécie de efeito ping-pong: sente-se a esperança que Nic está de volta aos trilhos que o levam para caminhos benevolentes, para 10 minutos depois nos desiludirmos com uma nova recaída e desencaminhamento. Experienciam-se vários nós no estômago. Como diria Saramago, “sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam“. Nem sempre acontecem finais felizes, e vemos que David, a certa altura, sente o fracasso a percorrer nas veias, desistindo de ajudar, como que aceitando os fatalismos e as impotências da vida. Haverá limite para o amor incondicional ou qualquer pai transporta em si uma réstia de esperança em relação à situação inóspita dos filhos? Será essa esperança pura negação ou ainda há esperança para Nic?

Destaco ainda as referências artísticas do próprio filme: desde a banda sonora, com bandas como Sigur Rós, Mogwai ou Massive Attack até à literatura, com referências ao livro The Beautiful and the Damned, de Scott Fitzgerald e do poema “Let it Enfold you”, de Bukowski. Termino exactamente com um poema deste último, que me lembrei no final do filme e acho apropriado.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico
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