Escrever era sempre a lápis. O lápis dava para apagar. Só os grandes é que podiam escrever a caneta. Os grandes não se enganavam. Quando se enganavam, nos primeiros tempos que começavam a usar a caneta, tinham de deixar o engano com um risco por cima. Mais tarde, quando já davam menos erros e erros menos importantes, podiam usar o corretor.
Ah, o corretor. Aquela caneta especial que com o agitar rápido e o apertar eliminava os erros. Havia quem usasse o corretor de fita, porque era menos sujo, e permitia até escrever por cima sem dar um aspeto trapalhão. O uso do corretor não eliminava os erros, contudo, tornava-os menos feios.
Escrever tem de ser sempre a lápis. O lápis dá para apagar. Só os grandes é que podem escrever a caneta. Os grandes não se enganam.
Quando tirei a carta aos 19 anos e quis comprar o meu primeiro carro foi-me exigido saber – no momento em que comecei a formular essa decisão – tudo o que um carro implicava. Inspeções, seguros, se é importado, velas, baterias, cavalos, carburador, trocar pneus, marcas de pneus, bons vendedores de pneus, mecânicos e eletricistas (honestos e trafulhas), e um sem fim de outros assuntos que eu nem imaginava. Como é normal para uma miúda de 19 anos que acabou de tirar a carta, eu tinha poucas exigências para o meu primeiro carro:
- 5 portas (ou 4, conforme a vossa perspetiva)
- 5 lugares
- curtinho de traseira
- uma pintura em condições (ou seja, não a cair aos bocados)
- e que não ultrapasse o meu plafond.
Como é óbvio, errei. Duas semanas após comprar o carro, tinha 4 velas queimadas, correia de distribuição para substituir e precisava de uma bateria nova. E foi o fim do mundo – para mim e para os mais próximos. “Pois, vê-se mesmo que não sabes, não estás preparada para ter um carro, olha para o que fizeste, vais gastar tanto dinheiro, se soubesses o que tinhas de saber já não te tinhas enganado”. Como se nunca ninguém tivesse feito um mau negócio. Como se nunca ninguém tivesse desejado não ter comprado x coisa, ou ter esperado um pouco mais por uma alternativa.
Assumi o meu erro. Aprendi. Mais tarde vendi o carro e só voltei a comprar outro depois de investigar muito bem. Os mesmos requisitos, o mesmo objetivo, mas com mais informação. E não voltei a errar.
Estar cada vez mais próxima dos 30 anos trouxe-me a certeza que ninguém sabe bem o que anda aqui a fazer, mas poucos grandes ousam admitir isso. Ter a humildade de assumir que não sabemos tudo, permitir-se ser vulnerável e dizer “Eu também estou a arriscar e não tenho a certeza” é para muitos descer de um pedestal em que eles próprios se colocaram, ou em que outros os obrigaram a estar.
Sinto muitas vezes que todos os erros que faço, mesmo os mais pequenos, são o fim do mundo. A minha vida fica condenada a partir daí. Tudo é um drama. Ninguém se vai esquecer dessa falha e todos me vão cobrar por ter falhado. Sou demasiada perfecionista, exigente comigo mesma e autocrítica, o que faz com que estes sentimentos e culpabilizações surjam mesmo quando se trata de ter esquecido as chaves ou de deixar uma gralha num artigo destes.
Então, estou sempre a tentar não errar, a tentar não falhar. Como muita gente, ou talvez como toda a gente.
Agora, já escrevo a caneta. Já sei que os grandes se enganam. Também posso usar corretor. E erro. E aprendo. E tento outra vez.