Aquando da nova lista dos melhores filmes de todos os tempos da revista Sight & Sound, Viagem a Tóquio (o terceiro na hierarquia) chamou-me a atenção: nada sabia sobre ele. No Verão de 2012 descobri que Yasujiro Ozu, é “só” um dos mais importantes realizadores japoneses de sempre.
Viagem a Tóquio é um filme genial sobre conflitos e contrastes: se a dicotomia campo-cidade é secundarizada pela vinda dos pais, que resolvem ir visitar os filhos a Tóquio, cidade estranha para quem está habituado à calma do interior, o contraste entre gerações é o ponto sensível do filme. Japão, 1953, as marcas da guerra estão ainda muito presentes e relegar os “velhos” para segundo plano é uma realidade.
A memória histórica tem destas coisas: adultera a realidade de uma forma mais eficiente do que a revisão e reedição orquestrada minuciosamente por qualquer ditadura. A ideia que fomos formando (e que provavelmente nunca aconteceu) de que os nossos pais muito respeitavam os seus próprios pais e, mais do que isso, de que no Oriente, pelo menos nessa época, se respeitavam as gerações anteriores e o conceito de família… tudo isso foi para mim posto em causa com este filme.
A entrada na terceira idade e o modo como lidamos com a debilidade crescente dos nossos pais diz-nos directamente respeito, é algo com que nos confrontamos e perante o qual temos que assumir uma posição. Muitas vezes, disfarçamos, endurecemos ou, a pior das atitudes, tornamo-nos insensíveis.
A vergonha dos filhos diante dos pais, sendo comum na adolescência, prolonga-se pela idade adulta. O reconhecimento que os velhos não encontram nos filhos foi uma revelação, como nas palavras da filha a respeito dos velhos:
– Quem são eles?
– Apenas uns amigos do interior.
Apenas Noriko, a nora, cujo marido havia morrido anos antes, na guerra, mostra um verdadeiro carinho e reconhecimento pelos velhos. É incentivada pelos sogros a refazer a vida, prova de que a geração anterior sabia ser justa sem perder o afecto, mostrando uma compreensão e sabedoria muito mais vastas do as dos filhos que criaram.
A forma como os pais vêm o sucesso dos filhos é primorosamente retratada numa conversa tardia num bar de Tóquio, onde os espíritos libertos por uns sakés levaram três conterrâneos a mostrar a sua visão do sucesso aparente dos filhos para reconhecerem que o que teoricamente valorizavam, não passava de aparência: os filhos haviam abandonado os valores que importavam.
– Acho que tu és o mais sortudo de todos.
– Porquê?
– Porque tens bons filhos e filhas de quem te orgulhar.
– Tu podes orgulhar-te dos teus também.
– Não, o meu filho não é bom. Foi dominado pela mulher e trata-me como se eu estivesse senil. É um nada.
– Mas chefe de departamento é uma boa posição.
– Chefe de departamento nada! Ele é só um assistente. Fico tão decepcionado… que minto às pessoas. Ele é um fracasso.
– Não digas isso.
– Ele é o meu único filho, e fui mole com ele – isso arruinou-o. Tu educaste bem o teu filho. Ele tem um diploma.
– Mas todos os médicos têm que ter diplomas.
– Eu temo que esperemos demais dos nossos filhos. Falta-lhes carácter, falta-lhes ambição. Eu disse isso ao meu filho. Ele disse que há pessoas a mais em Tóquio… que se torna difícil triunfar. O que é que achas? Os jovens hoje não têm firmeza. Onde está o carácter deles? Não foi assim que o criei!
(…)
– Entretanto, até eu vir para Tóquio, eu estava com a impressão de que o meu filho estava a ir bem. Mas percebi que ele é apenas o médico de uma pequena vizinhança. Eu sei como te sentes. Eu estou insatisfeito como tu. Mas não devemos esperar muito dos nossos filhos. Os tempos mudaram. Temos que encarar isso. Isto é o que eu acho.
– É mesmo? Percebo. Tu também!
– O meu filho mudou muito, mas não o posso ajudar. Além do mais, há pessoas a mais em Tóquio.
– Tens razão…
– Acredito que eu deva ser feliz.
– Talvez estejas certo. Hoje em dia alguns jovens matam os seus pais sem mesmo pensar. O meu pelo menos não poderia fazer isto.
O amor dos pais é assim, incondicional. Ainda que olhados como um estorvo (a expressão “Que problema” aparece inúmeras vezes nas bocas dos filhos), os pais nunca perdem a alegria quando vêem os filhos.
É um filme brutalmente actual.
A câmara, colocada ao nível do chão, ajoelha-se perante a altivez dos personagens. Porque se no Japão, muita da vida doméstica se faz no chão, é do chão que estes pais olham para os filhos, numa atitude de compaixão consentida, quase tão irreal quanto a bondade de Noriko.
Mesmo quando eles fazem o balanço da sua visita a Tóquio, embora mostrem ser muito mais perspicazes do que os seus sorrisos bondosos poderiam fazer supor, colocam os filhos sempre em primeiro:
– Em dez dias teremos visto todos os nossos filhos. E netos crescidos também.
– Alguns avós parecem gostar mais dos seus netos do que dos seus filhos. O que achas?
– E tu?
– Eu gosto mais dos meus filhos. Mas estou surpreendido como as crianças mudam. Shige costumava ser mais bondosa antes. Uma filha casada é como um estranho.
– Koishi mudou também: ele era um bom garoto.
– Os filhos não vivem para agradar aos seus pais. Vamos apenas ser felizes pois eles são melhores do que a maioria.
– Eles certamente são melhores do que a média. Somos afortunados.
– Também acho. Deveríamos considerar-nos sortudos.
– Sim, somos muito sortudos.
A intermitência Oriente-Ocidente: este filme, Ozu mostra um Japão muito menos milenar e mais próximo do Ocidente nos problemas familiares. O Japão (como todo o Oriente, de resto) ocidentalizou-se; glorificam o ocidente, o que não deixa de ser curioso, quando no ocidente nunca se glorificou tanto a cultura ancestral oriental. Viagem a Tóquio expõe bem este conflito: o fim da família e do respeito pela mesma (estamos nos anos 50).
Esta “troca de valores” entre Ocidente e Oriente parece-me dever-se a um jogo de equívocos: os orientais julgam que os ocidentais vivem realizados com os bens materiais e a cultura de massas, enquanto os ocidentais olham para a gente do oriente como sendo os mesmos há duzentos anos, que se satisfaz com pouco e privilegiava a espiritualidade em detrimento da materialidade. Acontece que nem os ocidentais se sentem realizados com a brutalidade do concreto nem os orientais preenchem assim tanto o espírito. Ambos necessitam do complemento que no outro lado do mundo se desenvolveu.
E no centro de tudo: o dinheiro. O dinheiro de que os ocidentais estão fartos (por isso anseiam pela fuga transcendental) mas do qual não se conseguem livrar, porque não só traz conforto mas também a ilusão do mesmo, é o mesmo dinheiro por que os orientais anseiam, para obter a sensação de satisfação imediata que vêem num ocidental, o qual saltita de “divertimento” em “divertimento”, sempre em busca de novas e mais arrojadas experiências, desde que o dinheiro as possa comprar, numa dependência brutal de ocupação do tempo “livre”, como se ele tivesse que ser todo ocupado.
É este choque cultural e geracional que é pintado por Ozu em Viagem a Tóquio.
Um filme que me levou a procurar outras obras de Ozu para concluir que é provavelmente o realizador que melhor e com maior sensibilidade retrata os problemas da Família.
Um filme obrigatório para qualquer amante de cinema.