Trinta anos e a vida inteira. Ginástica acrobática depois das aulas, nota máxima a Educação Física, o monstro que todos odiavam, menos ela, que nunca alegou menstruar três semanas por mês, rezando para que o professor não se lembrasse da desculpa da semana anterior ou que, lembrando-se, escolhesse fingir que não percebia.
Trinta anos e a vida inteira. Média muito superior à que lhe daria entrada no curso que queria, não fazia mal, sabia mais do que a maioria, haveria de ajudar quem tivesse dúvidas, gostava de estudar, nem as irmãs a distraíam, nem os rapazes, a que não achava ainda particular graça. Preferia os livros, as enciclopédias, as tardes passadas na biblioteca da escola, a dona Ausenda já nem perguntava, o mais certo era não ter teste nenhum e estar ali só por estar.
Trinta anos e a vida inteira. Bolsa de mérito na faculdade, quem é esta miúda franzina que ninguém vê mas que nos mete a todos a um canto, como é que é possível ninguém dar nada por ti e seres assim um pequeno geniozinho, nós aqui a queimar pestanas noite após noite, valha-nos o café de termo, e tu aí, muda e queda, a sacar de dezoitos para cima como se isto fosse a coisa mais fácil do mundo, foda-se, a sério, que injustiça, mas olha, se puderes, achas que nos consegues ajudar a estudar para isto, o exame vai ser duro e se deixamos isto para trás ainda o D. Sebastião regressa antes de acabarmos o curso.
Trinta anos e a vida inteira. O emprego oferecido sem entrevistas, a empresa a ir buscá-la à faculdade, só acontece aos melhores dos melhores e mesmo esses não são garantidos, às vezes preferem o estrangeiro e Portugal a exportar talento e depois é uma dificuldade, este curso é dos mais difíceis, não há ninguém actualmente com a cabeça desta rapariga, por favor, trabalha para nós, o pacote salarial é maravilhoso, seguro de saúde, progressão na carreira mais do que garantida, não tarda estás a chefiar equipas e, doutora, vamos mandar fazer a placa com o seu nome para a porta do seu gabinete, doutora, como quer o nome no cartão de crédito, tem a certeza de que não quer lá o Dra., olhe que fica bem, dá logo outro nível. Nunca queria. Nem as placas nem os Dras. nos cartões, só queria o nome, se tivesse mesmo de ser.
Trinta anos e a vida inteira. O cansaço. O corpo preso, pesado, como se desistisse de tudo, desobediente. O formigueiro, o desconforto, a pele a queimar, os músculos imóveis, não querer respirar, porque até respirar dói. As noites mal dormidas. O stress do trabalho, tem de ser isso, são muitos anos à frente desta equipa, terceiro ano consecutivo como melhor líder, melhor equipa, melhores resultados, a facturação aumentada em 13 por cento, isto nunca acontece, nem os fundadores conseguiram isto, é impossível, o mercado está em queda e mesmo assim. As viagens, aeroportos infinitos, horas e horas em escalas, jet lag, trabalhar no lounge da companhia aérea, por favor, onde é que encontro uma tomada, estou aqui há horas e não tarda fico sem bateria e tenho mesmo de enviar este relatório, trabalhar no avião, janela, sempre, para não incomodar nem ser incomodada, trabalhar no lobby do hotel, entre reuniões, no táxi, a caminho de reuniões, à mesa do jantar, depois, das reuniões. A dor de cabeça constante, o peso nos olhos, a tensão nos ombros, a dor, a dor, mais dor, cada vez mais dor. Ressonâncias magnéticas, TACs, análises, houvesse um Dr. House real e era já, esperar resultados, descartar hipóteses, talvez naquele hospital em Massachusetts, talvez em Londres, mais viagens, a dor de cabeça insuportável, cada vez pior.
Trinta anos e a vida inteira. As dores no corpo, o peso todo, a medicação que não ajuda, impensável ir de baixa, ok, fico dois dias em casa, mas respondo a emails, obviamente. As persianas descidas, o sono instável, a dor constante, incapaz de sair da cama um dia, depois mais um, que merda é esta, trinta anos, a vida inteira, e eu aqui refém de uma cama, da medicação, do tempo, o tempo contra mim, a doença a escalar por mim acima, por mim adentro, eu já não sou eu, sou aquela paciente novinha, coitada, condenada à fibromialgia, sentença demasiado pesada para quem não cometeu crime nenhum.
A doença invisivel e incapacitante… 🙁