A memória é algo de apaixonante e incompreensível. Assim, como quem não quer a coisa, apareceu-me uma situação vivida numa outra vida, quando ainda era adolescente e tinha a cabeça a andar sempre à roda para fazer mil e uma coisas. O que mais queria era ser livre e não ter nada que me prendesse a coisa nenhuma. Viver era a palavra de ordem e não queria prisões. Já me bastava a minha pessoa que crescia sem autorização.
Praticava alguns desportos e complementava tudo isso com outras tantas atividades que me preenchiam todos os dias. Quase não dormia, mas isso era coisa para meninos e eu era das rijas e aventureiras. Queria mesmo era que o dia tivesse mais horas para bem aproveitar tudo. Sabendo como era, havia sempre alguém que me lançava um desafio e eu nem hesitava.
Um dia, no final de uma das minhas aulas desportivas, dei de caras com um sujeito a olhar para mim. Primeiro, tinha sentido o seu olhar e depois uma força estranha que me obrigou a virar a cabeça. Devo ter feito má cara, como era meu hábito, mas ele retribuiu-me com um sorriso tão luminoso que me desarmou logo. Fiquei logo de pé atrás.
Ficámos assim. Ele sorriu e eu desconfiei. Para mim morreu logo ali a coisa que nunca aconteceu. Até que o voltei a ver. Desta vez foi mais ousado e veio falar comigo. Aquela voz era tão fresca e deliciosa que quase quebrei a minha rigidez. Não queria nada daquilo. Olhei-o e nada mais. Soou-me a truque barato com ar de material gasto e não era o meu género.
Durante uns tempos, esqueci o assunto e continuei a minha vida. Uma noite, depois do último treino, no regresso a casa com umas amigas, vejo-o ao fundo do recinto. Esperava por mim. Ligou aquele sorriso que incendiava a noite mais escura. Soltou um olá e ficou ao meu lado. Por momentos senti uma espécie de arrepio, mas talvez fosse apenas uma ligeira irritação e nada mais.
Elas, talvez pensando que era meu namorado, belos tempos em que havia segredos e ninguém se metia na vida de cada um, despediram-se de mim e foram embora. Ficámos os dois, lado a lado, como duas estátuas: mudos. Ainda não lhe tinha dirigido uma única palavra e percebi que ele esperava por esse momento. A virtude aprende-se.
Caminhámos sem trocar um som. Ele aproximava-se de mim e tentava tocar a minha mão. Eu sentia o seu calor, mas mantinha a minha postura. A caminhar e nada mais. Quem pensava ele que era? Quando estava perto de casa, que ele sabia muito bem onde era, virei-me para ele e li-lhe a alma. Foi aqui que deixei de ser eu.
Senti as pernas a fraquejar e os joelhos ficaram moles. A minha cabeça estava desligada. Dentro de mim houve qualquer coisa que se acendeu e tive uma vontade irracional de o abraçar. Que disparate era aquele? Estava parva? Fiquei sem troco para lhe dar e com muita vontade de o fazer. Que se passava comigo?
Subi as escadas a correr e fechei-me no quarto. O meu coração batia tão forte que se ouvia, com toda a certeza, pela casa em tom bem alto. Que coisa mais estranha. Vim à janela. Ele estava a acenar-me como se esperasse a minha reação. Fechei-a com força e quis esquecer tudo. Virei a cara para o lado na esperança de ter sido um devaneio e somente isso.
Na semana seguinte, lá estava ele, à porta da escola, mais o seu maravilhoso sorriso. Viu-me sair e abordou-me. Apenas com um sorriso conseguiu que o meu gelo se quebrasse. Não sei explicar, mas eu sabia que aquele era um dia diferente. Disse o meu nome e foi então que percebi que estava num turbilhão de sentimentos que só me trariam tormentas.
Da sua mão surgiu uma rosa que me tocou, ao de leve, na face. Devo ter corado, coisa que nunca me tinha acontecido antes. Um estranho e misterioso impulso apoderou-se da minha vontade e abracei-o como se fosse o mais natural do mundo. E foi aí que ele ouviu a minha voz, pela primeira vez. Era dirigida a si, ao homem que me soube conquistar.
As palavras que lhe disse ficaram arquivadas no cofre das nossas recordações e posso garantir que foi muito bom enquanto durou. Crescemos juntos, de mãos dadas, com planos e sonhos e ainda com o melhor que se possa desejar: com imenso amor imperfeito e puro. salteado com algumas pitadas de maturidade. Posso garantir que esse foi o tempo melhor da minha vida!