Santa Eulália, Domingo, 30 de Maio de 2021
Na varanda aberta para a montanha, viajo nos sons da noite, pelas luzes, espalhadas pela encosta à minha frente, que ganham vida no contraste deste vale.
Arouca traz-me a beleza imaginada nas leituras das histórias da província, Torga, Eça, Dinis. O vale é deslumbrante, o país profundo que o olhar de turista não deixa ver senão em postais à margem do quotidiano.
Quanto mundo por viver numa só vida? O esforço para Santiago (chegámos quinta-feira à Praça do Obradoiro) e a povoação perdida no meio do país. Quanta vida por viver num só mundo! Quanto de nós existe por crescer para lá dos contornos da rotina?
O suor das gentes que fez deste lugar o paraíso que observo embacia as lentes que trago para a viagem: tenho que treinar a vista.
O Arouca subiu hoje à Primeira Liga mas eu tive medo de subir à Sra. da Mó; como tive medo de atravessar a ponte 516 sobre o vale do Paiva: 175 metros de altura! Andei dez metros, vi como era e percebi que a vida é mais valiosa do que o medo; meia-volta, adeus e até logo: esperei pela Sofia deste lado da vida. Pela primeira vez assumi o medo sem dúvida, por inteiro.
O fogo de artifício que cintila na noite, ao longe na encosta, celebra a subida que abandonei a meio, a travessia que dispensou as patéticas ambições de superação (até de algum orgulho) para aceitar a alegria de quem alcançou, seja ponte da Sofia, a Primeira Liga do Arouca ou o meu Caminho de Santiago. As metas encontram-se na órbita de quem somos; para além disso, somos meros espectadores. quiçá ambicionando feitos que nos contaram serem nossos.
É possível encontrar inspiração sem estarmos tristes? Talvez, mas a nostalgia, a noite e a natureza alinham-se como canais privilegiados para que a escrita fuja aos lugares comuns; depois é deixá-la manifestar este sentir com que a montanha que abraça o vale, e me envolve. Como é bom escrever em Santa Eulália numa noite de fim de Maio, à varanda enquadrada pelo monte. Como é bom abrir pequenas janelas de solidão, com as estrelas, as memórias e outros lugares comuns, sabendo que lá dentro (ou lá fora?) está a Sofia, com um beijo de boa-noite à minha espera. Esta é a solidão que assenta bem.
PS: A Patrícia veio do Porto para nos ver. Um café no centro, conversa na esplanada pelo meio de uma terra em festa e a alegria a atingir o coração da vida.
PS2:
Rinchoa, 17 de Novembro de 2022
Esta foi a última entrada do diário do Caminho Inglês de Santiago, vivido com a Sofia entre 23 e 27 de Maio de 2021, quase deserto em plena pandemia, escassos meses depois de sermos o pior país do mundo a lidar com a doença (na primeira vaga havíamos sido os campeões). É impossível dissociar as impressões então registadas do tempo que se vivia, mas creio que, à parte a logística de máscaras e álcool-gel, e a incerteza de poderem mudar a regra a qualquer momento e, fechando a fronteira, perdermos as reservas e o Caminho, foram dias bonitos, aqueles. No regresso, parámos três dias em Arouca onde caminhei pelos passadiços, mas não pela ponte. O meu Caminho foi outro mas Arouca fez parte dele; mais um paraíso descoberto em Portugal.