Sara, 19 anos, invisível na vida e na morte

Ser pobre é estar condenado a uma vida de miséria, mas não devia ser assim. É um lugar comum, mas, neste país, à beira mar plantado, ainda acontece e com mais frequência do que se possa pensar. E as assimetrias são gigantescas. A diferença entre norte e sul é abismal e assustadora. Não são as planícies e as montanhas que se diferenciam, são também as mentalidades. Um país tão pequeno que consegue funcionar de modo tão díspar é assustador. A diferença entre os ricos e os pobres sempre existiu e nunca deixará de haver este fosso. Ser pobre implica ser relegado para segundo plano, não ser considerado, não ser alguém com voz que chegue aos ouvidos que ouvem.

Sara Moreira tinha 19 anos e uma grande esperança no futuro. Sabia aquilo que desejava na vida e era uma peça fundamental da sua família. Estava a estudar e o seu sonho era ser Educadora de Infância. O seu estágio estava mais do que feito, com o seu irmão, que era um desafio constante. Ter um irmão diferente é sempre complicado, mas para ela era uma realidade que não a confundia. Ser autista é viver num mundo próprio, estar fechado numa prisão que não existe, que o próprio, sem o saber, criou para si. Foi o seu teste psicotécnico, a sua psicologia aplicada, o seu rumo a seguir.

Desde os 16 anos que se queixava, com regularidade, de fortes dores de cabeça, de tonturas e de dores na cervical. Chegava a desmaiar. Para a família era um sufoco de cada vez que tal acontecia. Não entendiam. Nunca entenderam. A pobreza e a falta de conhecimentos costumam andar de braços dados. Reanimavam-na com água. Recuperava a consciência e tudo voltava ao normal. Quando acontecia na escola, a ambulância levava-a para o Hospital Padre Américo, mas não lhe faziam exames. Era invisível. Ataque de ansiedade. Como? Não se fazem exames médicos para complementar o diagnóstico? Uma das vezes fizeram um teste de gravidez. Mas porquê? Porque tinha desmaiado e era uma menina pobre? Seriam assim tão insensíveis e incompetentes com o filho de um rico?

Durante o seu calvário, extenso, foi ao hospital 11 vezes e foi vista por 7 médicos diferentes, nenhum lhe prescreveu nem uma ressonância magnética nem uma TAC. Insistiam na ansiedade. É mais fácil, dá menos trabalho. Além disso são exames de custos elevados e na saúde deve-se poupar. É assim que, infelizmente, os tecnocratas pensam. Inadmissível! Um hospital não é uma empresa financeira, não está vocacionado para o lucro, mas sim para a cura, quando possível. A ansiedade é inócua e qualquer resposta acalmava os receios daquela família. Isto é violência psicológica, no mínimo.

Um filho é tanto para os seus pais! É uma continuidade, uma esperança, um sonho realizado. Sara era a filha mais velha do casal Mário e Maria de Fátima. Uma menina decidida e que ajudava a mãe na difícil tarefa de cuidar dum filho especial. Levantava-se às 6h30m e, juntamente com ela, chegava a alegria àquela casa onde o pai, desempregado, lutava por conseguir um emprego. É velho para recomeçar a vida profissional, é novo para ser reformado. Sociedade estranha que transforma a vida das pessoas honestas em antíteses reais e sofredoras.

Esta menina gostava de aprender. Tinha a sua vida organizada, tudo planeado menos o que aconteceu, de modo injusto, inesperado e inevitável. Tinha um tumor no cérebro, com 1,670 kg, que a impedia de viver. Como é que nunca o detectaram? Por ela ser de condição social baixa? Por não a levarem a sério? Um teste de gravidez? Mas que falta de respeito é esta? Esta menina estava em profundo sofrimento, recorreu a especialistas e ninguém, nenhum deles conseguiu ver que era real, que era verdadeira a sua queixa? Que enorme desumanidade! Foi vítima duma sociedade discriminatória e que vive de costas voltadas para o outro.

Imaginemos, e agora fazemos um exercício mental, que numa das idas ao hospital, na terceira ( já dou o benefício da dúvida ), na zona da grande Lisboa, lhe tinham efectuado os exames certos. O tumor era detectado. Seria sempre melindroso explicar aos pais que a filha tinha algo que a “consumia”, mas podia ser tratável e, apesar de não se saber o desfecho duma situação destas, o juramento de Hipócrates obriga a que se salvem vidas humanas. Sara podia estar viva e a equipa médica satisfeita por ter salvo mais uma vida. E tudo faria sentido.

Contudo, não aconteceu assim. Não houve nem interesse nem vontade de esclarecer uma situação recorrente. Se ela voltava era porque não estava bem. Não era a ansiedade, típica da idade, como lhe disseram, que a inquietava. Tanto quanto se sabe nem namorado tinha, portanto não havia nenhum coração a bater descompassadamente. Até essa maravilhosa sensação lhe foi roubada porque não olharam para ela, porque não a viram. Não falavam línguas diferentes então porque não foi considerada?

Uma manhã a mãe estranhou a falta de alegria, do som do rádio e foi ao seu quarto. Estava caída no chão, só que desta vez não estava desmaiada. Ainda a tentaram reanimar com água, como era hábito, mas não havia nada a fazer. Já estava tudo feito. E desfeita a vida desta jovem de 19 anos que tinha um sonho quase a concretizar.

A autópsia revelou que era um tumor de crescimento lento. Ela foi sofrendo, gradualmente, à medida que aquele apêndice ia crescendo na sua cabeça, que a forçava a aguentar um peso que não era normal. Fez o que se faz, foi ao hospital e apresentou as suas queixas. Não lhe fizeram o que lhes competia, ignoraram-na. Ataque de ansiedade? Sempre? Mas com quem estamos a lidar? Infelizmente nesta zona a mulher é duplamente ignorada, enquanto ser humano e enquanto mulher. Era uma adolescente logo estava a fazer perder tempo.

Sara viveu uma curta vida. Apesar de nunca ter tido nem luxos e muito menos caprichos, era uma rapariga alegre e bem-disposta. Era muito risonha e consciente. Sabia que a vida era dura e estava a reunir as armas para a luta que se avizinhava. Era uma rapariga crescida. Não merecia ser desconsiderada nem ignorada. 7 médicos e nenhum se apercebeu da gravidade da situação? E a dor desta menina ia-se prolongando, aprofundando e a vida dela ia-se afundando.

Passados 3 anos é aberto inquérito ao hospital. Talvez a nova tutela tenha a coragem de levar até ao fim as investigações e os culpados sejam finalmente responsabilizados. A vida da Sara nunca poderá ser recuperada, mas a chamada de atenção é para evitar que se cometam mais erros deste teor. 11 vezes? É muita falta de respeito acumulada. E com pulseira sem urgência. Nunca foi tomada a sério. Sara, nome que significa curar, morreu porque a deixaram ficar doente.

Esperemos que a justiça se faça e em moldes adequados. Uma vida humana é um valor maior, insubstituível e irrepetível. Sara não poderá voltar a viver. Fica a saudade e a sua recordação. O irmão não entende o que aconteceu. A mãe tem receio de ir ao hospital, já não acredita naqueles médicos e o pai, continua desempregado e com olhos carregados de raiva e revolta por tudo o que fizeram, ou não fizeram, à sua menina.

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Comments 1
  1. Tenho conhecimento deste caso há algum tempo pela televisão inclusive ontem no programa da Júlia. Pergunto-me a mim mesma o porquê da Sara não ter estado a ser seguida pelo médico de família no centro de saúde. Será que não houve ninguém que aconselhasse a Sara ou os pais a que ela fosse a uma consulta no Centro de saúde? Ontem os pais disseram que ela tinha um inchaço na nuca. Porque não a levaram a uma consulta de um médico particular para uma segunda opinião?? Por não terem dinheiro? Para isto há sempre pessoas amigas ou família que emprestam o dinheiro.
    11 vezes e sempre a dizerem a mesma coisa??? É uma pena!

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