Para entender o povo alentejano é necessário, muitas vezes, escavar na memória. Penetrar nessas vivências que fizeram as pessoas. E fazendo as pessoas, construíram o povo. Na Mina de São Domingos, escavamos a memória ao recordar o ventre da terra que foi escavado.
Imagine-se um sol que se põe calmamente, podemos senti-lo deslizar sobre a cal das paredes das casas típicas em nosso redor – esse tom alaranjado (pronuncio de calor) que contrasta com o branco imaculado, o branco cuidado, o branco gesso destes lares. Imagine-se um bom vinho alentejano, fruto de um ano, de um tempo, de uma arte… colhido pelas mãos torradas de gente experiente, aprimorado nas cubas, engarrafado com carinho e servido com alegria! Até Amália o sabia: “Eu já fui, responde o vinho, a folha solta a bailar ao vento”, cada gota traz o sabor do sol, o revirar das cepas. E desce pela nossa garganta, encorpado e doce, quando chega ao ventre leva um calor que se espalha pelo nosso corpo todo. Como um abraço.
Imagine-se um cante, lá longe onde se ensaia; ou cá bem perto, ao balcão. Cantemos, cantemos com quem conhecemos desde sempre, cantemos com quem não conhecemos. Cantemos modas que aprendemos ao longo dos nossos dias, cantemos (“pianinho e atrás”) modas que nunca ouvimos na vida. Cantemos por estar felizes, tristes, raivosos, cheios de calor (“calma”)… ou por razão nenhuma.
Cantemos à nossa mãe. Cantemos à Virgem santa ou ao velho Pimpão que dava passeios na hortinha e se enfrascava em bom vinho. Cantemos a todos e mais ao resto!
Oh, Mina de São Domingos
Não és vila nem cidade,
És uma capela d’oiro
Onde mora a mocidade.
Em vinte e seis anos que levo de ser alentejano, nunca me se me acaba a maravilha de ver a beleza e candura do Alentejo. A forma como as suas imagens nos tocam, o seu sabor nos preenche, as suas gentes nos recebem.
E é por isso que gosto de rever sítios, gosto de me aproximar uma e outra vez deles, na esperança de, um dia, conseguir beber toda a sua essência.
O meu roteiro, com alguma frequência, passa pela terra de parentes meus. Já no concelho de Mértola, Mina de São Domingos é um segredo bem divulgado pois já são muitos aqueles que aproveitam e desfrutam da sua praia fluvial e do roteiro do minério, no entanto nunca deixo de lá ir para repensar aquilo que também é importante – o material de que somos feitos.
Muita gente, quando pensa no Alentejo, recorda o trabalho nas searas, a colher as culturas, por ter sido uma conotação tão importante para nos definir como povo. Uma união fraterna criada pelo campo e pelas adversidades de quem o trabalha ou depende dele. No entanto, muitas são as famílias que, ainda hoje, dependem de outra indústria – o minério.
Quando juntamos minério e Alentejo na mesma frase até o senhor Google diz, e bem: Aljustrel. Esta é uma terra que ainda hoje vive da exploração mineira. No entanto, naquilo que era conhecido como o filão Ibérico existiam muitas outras minas onde homens e mulheres trabalharam, lutaram e até pereceram durante grande parte da sua vida. De um lado e outro da família tenho mineiros, acredito não ser o único por estas paragens.
A vida de mineiro ainda hoje não é fácil… nos tempos em que a noção de condições de trabalho se resumia a vida fazia-se debaixo de terra, no meio do pó, do gás, das infeções pulmonares… em casa a família fazia-se naquilo que hoje chamaríamos “um quarto pequeno” onde havia cozinha, sala e camas – pai, mãe e todos os filhos com que fossem abençoados. O descanso era o indispensável, a comida era a indispensável… o salário era o indispensável e a tirania andava de braços dados com a dor.
No entanto, havia amor. Amor à terra e amor dentro de casa. Havia, na Mina de São Domingos, algum desenvolvimento (luz) e, para quem conseguiu aproveitar-se dele, algumas condições.
Guardamos, com carinho, em casa uma lanterna usada na mina, junto com outros artefactos em que, entre os meus prediletos está o livro de anotações laboratoriais de qualidade do minério – uma herança da família.
Hoje em dia, sobram os esqueletos da mina encerrada, as lagoas de lavagem do minério apresentam o seu belo/tóxico vermelho e as memórias ainda recordam histórias de familiares que ali trabalharam. As casas dos mineiros ainda nos recordam que o normal nem sempre foram as vivendas geminadas e o ar puro…
Gosto de ir a estas paragens e fazer o trajeto do minério, desde a mina até ao Pomarão. Gosto de visitar o museu do mineiro, a tapada e esses casebres abandonados e fossilizados – estação de lavagem, entrada da mina, passadiços, estação férrea, porto e as casas dos Ingleses, antigos donos senhoriais da mina…
Gosto de ir ver como se modificou: a praia fluvial que nasceu, o bar agradável, o hotel da Mina. Estas coisas podem não ser o seu passado, mas são o seu presente. As migas e outras iguarias que se podem degustar e, em especial, o gerúndio: o ir vendo, ir andando, ir banhando, ir vivendo!
Por estas e tantas outras razões, este é um Alentejo que vos queria apresentar. Aproveitem e vão espreitar, ter um dia diferente – sentir um Alentejo singular mas que nos marcou grandemente. Uma terra ária onde pouco brota, é certo, mas brota muita sabedoria que podemos trazer aos nossos dias para nos lembrar de onde viemos, como estamos e de que forma queremos estar. Devemos muito a estes homens e mulheres e, acho eu, a melhor forma de lhes prestar homenagem é visitando estes locais.
Assim é, no Alentejo.