Meninos levam a sua cadeira para a escola

Vislumbre de África, Visão de Angola

Primeiro uma mancha colorida. Depois movimento. O carro vai-se aproximando e notamos que o colorido não lhes vem das batas, brancas. A visão endireita-se e deixa-nos perceber: são meninos que caminham, à beira da estrada, e as cores que víamos ao longe tomaram agora a forma de cadeiras, de plástico, carregadas às costas ou em cima da cabeça. Vão para a escola, assim.

Cá é mais comum ver mochilas nas costas dos meninos; lá envergam-se batas brancas e cadeiras, como parte da farda escolar. E, se podemos discutir a utilidade da bata, a cadeira, claro está, serve para se sentarem :). A escola é um edifício muitas vezes cor de rosa, menos vezes com cadeiras dentro. Mas a cadeira tem mais utilidades: bem colocada sobre a cabeça, tapa do sol, protege da chuva, serve de escudo e, às vezes, de arma. É assim. Esta peça acompanha-os, tantas vezes, para a frente e para trás, no trajecto diário escola-casa . Não a deixam na escola, pois dasapareceria antes de despirem a bata.

Penso no brilhante negócio que terá sido fornecer batas para os meninos neste país, cuja taxa de natalidade desafia todos os índices da sensatez. Tanta coisa lhes falta, batas não.

É uma das imagens que se vê na beira da estrada,  meninos a ir e vir da escola em turnos sucessivos, com ou sem cadeira, mas de bata. Batas brancas no sujo que é regra, caminhando lado a lado com carros, camiões, motas, e outros veículos cuja circulação desafia os limites da mecânica, cuja aparência lhes subtrai o nome de carro, mota, camião. São outra coisa, estes veículos, nascidos de onde tanto falta, menos a imaginação.

A vida acontece nas beiras das estradas – transacções dos mais variados bens, congeminação de serviços, trocas, encontros, circulação de gente e de animais. Os animais (entenda-se galináceos, bovinos e caprinos) e as pessoas, às vezes, asfixiam-se nas bermas e atravessam-se na estrada, fazendo dos pedaços de alcatrão passeio, que, de outra forma, não há;  as mães sentam-se na beira do alcatrão e amamentam os filhos, as famílias juntam-se e vendem o que há, comem o que sobra. Os ditos veículos largam-lhes pó e barulho para cima. Eles também fazem barulho. É outra regra.

Caminham por distâncias pouco compreensíveis. Não se adivinha de onde vêm, para onde vão, quando vão chegar. Os meninos vão fazendo o seu trajecto sem pressa – pressa?, o conceito ainda não se teceu. Os animais seguem o mesmo destino, aparecendo no meio de nenhures, dirigindo-se para outro nenhures, questionando a nossa compreensão. Parecem ali depositados por alguma mão invisível, em pouco razoável.

Para lá das beiras da estrada, a coisa muda, o filme é outro, o disco toca outra sinfonia. A visão transforma-se, alarga-se. Há espaço. Um espaço com mais espaço dentro. Um espaço que parece corpóreo, denso, como se o sentíssemos a pesar no nosso corpo. Uma outra categoria de espaço, que parece carecer de vocábulo à altura.

Longe e perto, ali, são outra coisa, como se sucessivas miragens nos levassem na certa, alimentando uma esperança de chegada que demora mais do que os olhos podem alcançar. Onde se quererá chegar ali, afinal? Quererão chegar a lado algum?

Para lá das bermas da estrada, as regras são claras e quem as dita é uma e a mesma, um dia depois do outro, repetidamente, pacientemente, generosamente, a tentar ensinar uma qualquer lição. A Mãe.

Eu vi e senti com uma clareza surpreendente o que é a Imanência da Natureza. O conceito tornou-se palpável, objectivo, como se tivesse levado um bofetão lento e demorado, daqueles que se vê nos filmes, enfatizados pela câmara lenta, que me deixou atordoada e incrédula. As ideias superlativas que trazia desfizeram-se em relativos insignificantes. Eu vi o que pensava não poder ver: uma imagem do início dos tempos.

Há muitos conceitos que, naquele chão, ainda não se inventaram. Outros há que parecem ter sido forjados naquele lugar e em mais nenhum. A História diz-nos que dali viemos e a Natureza lembra-nos disso a cada instante. Parece ser ali que se pode contemplá-La num estado mais próximo do que terá sido na origem, na sua pujança primordial, numa força telúrica, magnética, quase irreal.

Momentos há em que tudo parece estar fora do lugar, como se o sentido da existência fugisse dali – ou o sentido é outro, ou, sabe-se lá, não há sentido. Na beira da estrada o sentido foge da escala da razoabilidade. Para lá da beira da estrada, o sentido escuda-se da escala do merecimento: não a temos tratado assim tão bem, e Ela continua ali, paciente, generosa, um dia depois do outro, imanente, a DAR.

A água transborda.

As plantas agigantam-se.

Os frutos excedem-se.

O Sol abrasa.

Tudo é mais primitivo, ainda.

A Natureza alude àquilo que seria o estado das coisas num tal Jardim do Éden, o resto não.

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