Cecília Barreira

Existem inúmeras formas de morrer, mas a solidão deve ser a maior dor que pesa em quem deu tanto. A Cecília descobriu-se em prol dos outros, mas pouco teve de retorno. Viveu na sombra e foi escurecendo até que se apagou.

Professora universitária, versou temas actuais nem como assuntos sobre o passado de todos nós. O papel da mulher atraía-a. Uma sedução poderosa que a fez mergulhar nesse mundo fascinante.

A poesia tinha nela um posto altaneiro. Esta mulher de sorriso triste e tão dorido, vertia mágoas e alegrias com linhas pejadas de finíssima sensibilidade. Era o seu exorcismo, o libertar de fantasmas que lhe davam soluços de liberdade.

Conheci uma Cecília jovem, a que estava coberta de sonhos e vontades, a que se ria dos meus disparates e me incentivava a continuar. Fez tanto e foi recuando, escondendo, desaparecendo.

Recordo-a cheia de energia, brincalhona e entusiástica. Os seus planos eram tão grandes que lhe saíam em forma de vulcão cultural. Quem a ouvia sabia que tudo era genuíno e verdadeiro.

Eu tinha entrado naquela casa grande, o liceu com nome de rainha. Tudo era novo e sabia que a jornada seria dura. Ela era finalista, cheia de charme e à vontade na casa que era sua.

Naquela época, usava-se bata e emblema, para identificar os anos. Poder-se-ia dizer que o medo seria meu parceiro, mas foi o seu contrário, senti-me acarinhada e a Cecília seria o meu modelo.

História das nossas avós, um livro de sua autoria, retrata a burguesia de Lisboa com os seus hábitos e manias, as alegrias e tristezas, os ais e uis de quem tem que ter ar de saber estar.

A poesia deu-lhe outro alento e a sua generosidade permitia que a mesma fosse de todos, partilhada para quem tivesse a sensibilidade para a ler e entender. Até neste ramo, onde voam palavras para chegar a almas, as nuvens chegaram.

Morreu de solidão. Não há familiares que reclamem o corpo. Até na morte foi abandonada. Fechada e tão esquecida. Ninguém. Nem um familiar. Teria amigos? Como se pode morrer assim?

Cecília, aquela que lutou pelas mulheres, a que provou o terno sabor da independência e do saber, a que deu o saber a muitos, a que apaziguou almas e criou uma nuvem de magia com palavras juntas e certeiras.

Cecília morreu. Na verdade, já havia morrido há muito. Caiu no esquecimento, mirrou, deixou de ser vista e, já morta, não é de ninguém. Tudo isto é imensamente triste. O choro é pesado e duro.

Cecília, uma vida curta, uns meros 67 anos, muito mal-arrumados.

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