A vida compõe-se. Mesmo quando pensamos que não, quando estamos convencidos de que a dor e a tristeza vão ser eternas, a realidade, a verdade verdadinha é que a vida se compõe. Era como tirar, às escuras, umas cuecas e um soutien, sem ver, e que a cor dos dois fosse a mesma. Sem querer, foi um soutien vermelho e umas cuecas vermelhas. Sem ver. Às vezes reparamos logo, assim que os vestimos; outras vezes vestimos e e só à noite, ao vestir o pijama, descobrimos a coincidência.
Leonor olhava-se ao espelho, para a roupa interior vermelha que tinha vestido essa manhã, e pensava que a vida se compunha como a roupa interior, e que a roupa interior se encontrava quase sozinha às escuras, e depois nos fazia acreditar que a vida também encaixaria no lugar certo. Ou que ela encaixaria no lugar certo da sua vida.
Olhava para o espelho, e pensava que tudo vai encontrando o seu lugar; às vezes precisamos de dar um empurrão ao destino, outras vezes não conseguimos ver logo que as coisas melhoraram, ou por vezes quase que conseguimos identificar o comboio que nos vai tirar da tristeza antes de ele chegar à estação.
Leonor olhava-se ao espelho. Tinha no espelho uma eterna recordação de que tinha sorte, de que estava viva. Mas essa recordação não bastava. Por isso tinha escolhido aquela casa, com aquela paisagem.
Foi até à cozinha, onde a água estava a ferver. Abriu o armário e tirou uma caneca. Dentro, pôs um saquinho de chá que tirou da despensa, e verteu a água quente. Esperou um pouco, enquanto brincava com o saquinho de chá e via as formas que o fumo fazia ao sair da caneca, ao fugir da água quente. Era livre, e desaparecia assim que se libertava. Pegou na caneca e foi até sala, sentar-se no cadeirão que tinha ao pé da janela. Olhava para fora, enquanto pensava. Bebia um gole de chá, e pensava. Olhar perdido, virado para os seus pensamentos. À sua frente, aquela paisagem mórbida, o cemitério. Olhava. Olhava. Pensava. Queria não esquecer. Olhava pela janela, para aquela paisagem que muitos evitariam, mas que ela tinha sentido, durante muito tempo, que precisava. Para não deixar que a depressão ganhasse. Para se lembrar que existia. Quase para respirar. Dava graças por não estar ali, e sentiu, com alguma tristeza, que já não tinha a certeza de precisar daquela imagem – das campas, das árvores, das cruzes – para saber que era feliz e que tinha tido sorte.
Era hora de se deitar. Passou em frente ao espelho do quarto, e o seu corpo queimado apanhou-a de surpresa, como se se tivesse esquecido. Olhou-se, viu o seu corpo queimado. Não com mágoa, mas com curiosidade. Já não se importava tanto, já não a afectava tanto, porque sabia que agora era assim. Quando se via, já não se lembrava do acidente que tinha tido há uns anos, porque era como se tivesse sido assim desde sempre. Concentrou-se: sobrevivi. Estou aqui. Sinto-me feliz. Riu-se. A vida compõe-se.