Projecto: Humanidade

Uma das mais interessantes e complexas características dos tempos que vivemos é, para mim, o trazer ao de cima tudo o que tem estado muito guardado e escondido, fazendo-nos confrontar com algumas questões profundas e fracturantes das nossas sociedades, mas, acima de tudo, da humanidade. As últimas semanas têm sido muito ricas nesta questão, com as várias questões já habituais do Presidente dos Estados Unidos da América, mas também com as eleições brasileiras e, mais recentemente, com a situação de Cristiano Ronaldo, entre tantas e tantas outras.

O que isto tem gerado é, um pouco, mais do mesmo, muita discussão fora de senso e de foco, muita agressão, muita tensão emocional despejada para as redes sociais. Com toda a honestidade, há muito tempo não entro nessas discussões que a nada levam, protagonizadas por seres, como muitos de nós, ávidos de ter voz, seja ela de que natureza for, que rapidamente, com o conforto de estarem por trás dum ecrã, vociferam todas as suas frustrações pessoais nas caixas de comentários. No entanto, confesso que estes últimos dias, com a quantidade de informação que li e ouvi, não consegui deixar de me sentir afectado por toda a vibração de julgamento, de raiva, ódio e falta de discernimento que circula à minha volta, e até me fez recordar uma crónica que escrevi no início de 2017.

Senti, por isso, necessidade de parar, pensar e sentir, acima de tudo reflectir e colocar-me em causa, sobre o que estamos a viver no mundo neste momento. Tarefa dura e árdua, sem dúvida, pois o ruído é muito intenso, muito forte, e deixa pouco espaço para uma certa serenidade que todas estas questões nos pedem. No meio disto, uma regra, para mim, infalível, a de que, quando nos propomos seriamente a algo, o Universo providencia de chegarmos onde precisamos de chegar, voltei a um projecto que me tem interessado muito e passei algum tempo a ver atentamente um vídeo que me fez todo o sentido, nomeadamente com estas questões do juiz Kavanaugh, da acusação a Cristiano Ronaldo e do movimento #MeToo.

O projecto chama-se Man Enough, (pode ver aqui o website e a página de Facebook) é norte-americano, e é desenvolvido por Justin Baldoni, CEO da Wayfarer Entertainment, a produtora deste movimento. Nos seus vídeos, Justin Baldoni reúne-se à mesa com outros homens para falarem de temas pouco habituais entre os homens, explorando um lado que, muitas vezes, é ignorado ou negligenciado, o do que é ser homem nos dias de hoje e os desafios à masculinidade para os tempos que vivemos. Nos últimos anos, o mundo tem rodado muito à volta das questões de igualdade, muito focadas no papel das mulheres, mas também sobre as chamadas “minorias”, sobre o racismo, sobre a misoginia, sobre a xenofobia e a intolerância religiosa. Todas estas discussões são importantes e muito válidas, mas tem faltado o lado que tem sido sempre considerado o lado privilegiado e forte da história dos últimos milénios, o dos homens. Contudo, isso não é bem dessa forma e, na realidade, é preciso incluir também este tópico nestas várias conversas, debates e caminhos de iluminação e esclarecimento.

Ao ver o último vídeo (que, infelizmente, ainda não tem disponíveis legendas em português), precisamente com a temática #MeToo, um pouco da intensidade destes dias apaziguou-se e senti o apelo de partilhar estas palavras através deste espaço, que nada têm a ver com as questões femininas ou masculinas, mas sim de algo maior, do papel de cada um de nós na constante construção da nossa sociedade, actualizando-a para o momento presente.

Imagem do Vídeo #MeToo – Man Enough

No meu entendimento, um dos grandes problemas que o 11 de Setembro trouxe foi uma enorme e profunda divisão da humanidade, o agudizar dum fosso que sempre existiu, é verdade, mas que, a partir desse momento, se legitimou com o assumir de dois lados, dos bons contra os maus (até mesmo pela expressão Eixo do Mal, usada pelo ex-Presidente George W. Bush no seu discurso sobre o Estado da União, a 20 de Janeiro de 2002), que, lentamente, tem tomado muito conta da nossa forma de ver o mundo. Contudo, como há muito tempo digo, o caminho que estamos e precisamos de percorrer não é o da divisão, mas sim o da unidade, o da partilha, o da igualdade, mas, para que isso possa acontecer, é preciso trazer à luz tudo o que está guardado nas profundezas das trevas, e isso, sem dúvida, é o que estamos a assistir nestes tempos.

Acredito que este é o momento certo para nos colocarmos em causa e nos questionarmos, afinal, o que estamos a ser como pessoas? Não como homens ou mulheres, não como héteros ou LGBT, não como cristãos, católicos, muçulmanos, judeus, hindus, budistas, agnósticos ou ateus (ou outra coisa qualquer), não como brancos, pretos, amarelos ou vermelhos, como pessoas, como seres humanos. Ao nos questionarmos isso, ao nos colocarmos no centro da questão, individualmente, teremos, necessariamente, de questionar outra coisa tanto, ou mais, importante: o que estamos a ensinar às gerações que chegaram depois de nós?

Para mim, estas são as duas questões mais importantes destes tempos, que precisam de associar dois conceitos de suprema relevância, o respeito mútuo e o amor-próprio, mas é também aqui que começa um grande novelo que necessita de ser desemaranhado, que leva tempo, muito tempo, muitas décadas e gerações. Nós somos o reflexo de todos aqueles que vieram antes de nós e somos o espelho de todos os que chegaram depois de nós e, por isso, há uma enorme responsabilidade nas nossas mãos, que começa por esse assumir.

Na verdade, sinto que nos tornámos numa sociedade violenta, baseada e focada na agressão, na defesa e no ataque, na reacção, esquecendo o ouvir, o colocar do outro lado, a empatia, a comunicação e o senso de propósito para algo maior. A violência é o mais puro reflexo da falta de respeito e de consideração pelo mais básico que existe, a vida, e nem sequer é apenas a humana. Carregamos isso dos estigmas de meados do século XX, das gerações nascidas no período das guerras e imediatamente depois, das culpas que elas ainda viveram, das feridas abertas, gerações não preparadas para toda a mudança que esses tempos trouxeram. Com medo de que, novamente, pela ingenuidade e pela ignorância, permitíssemos tamanha barbárie e voltássemos a viver o fascismo, a ditadura, a guerra, criámos um mundo baseado no controlo e na submissão, na supremacia de uns contra os outros, o que, associado a questões carregadas sobre nós desde há milénios, onde se destaca o patriarcado, tem criado um sistema que está, agora, a rebentar.

Permitimos a falta de respeito sobre nós, porque foi isso que nos foi ensinado, por palavras e actos, por falta de amor e de compreensão, e continuamos a ensinar isso aos miúdos. A não vivência de amor no lar, o não exemplo de respeito, a obrigação de sermos bons filhos, boas esposas, bons maridos, baseados no mundo da matéria, no dever do respeito, no trazer boas notas, no garantir do sustento, no manter o lar impecável, dentro e para fora, tudo isso hoje reflecte-se sobre uma sociedade diferente, com propósitos e ideias diferente, mas mentalidades ainda não reconstruídas.

Reclamamos que há violência, mas permitimos que miúdos e adolescentes, nas idades em que estão a formar as suas personalidades e identidades, tenham acesso a filmes e, pior, videojogos, onde essa violência, das mais diversas formas, está presente, alegando que são “apenas isso”, filmes e videojogos. Alertamos para o bullying que é feito sobre os miúdos, mas, mesmo sem nos apercebermos, contribuímos para ele, nem que seja passivamente, até porque, em última análise, todos somos responsáveis por tudo o que é vivido na nossa sociedade, por acção directa e, principalmente, por inação, compactuando surda, cega e mudamente para que tudo permaneça, mas vindo vociferar para as redes sociais contra aquilo que também pesa nas nossas próprias mãos. A violência que nos rodeia, nas mais diversas formas, tem também o nosso cunho, enquanto não assumimos a nossa responsabilidade perante a sociedade, enquanto não percebermos que há pequenos actos que podem mudar muita coisa, com reacções em cadeia absolutamente extraordinárias.

Já não vivemos o tempo em que o homem não chora e as meninas não sobem às árvores, mas dentro de nós essas crianças continuam a existir e a transportar tudo para os adultos que somos hoje.

Então, é tempo de realmente nos questionarmos quem somos e o que estamos a ensinar, o que estamos a transmitir pelos nossos actos e exemplos, assim como pelas nossas palavras. Já não vivemos o tempo em que o homem não chora e as meninas não sobem às árvores, mas dentro de nós essas crianças continuam a existir e a transportar tudo para os adultos que somos hoje. É preciso recordarmo-nos que uma das coisas que mais nos torna humanos são as emoções, mas que elas, sem a mente, são um impulso descontrolado e, sem dúvida, é isso que vemos todos os dias, em todos os minutos, espelhado à nossa volta.

É tempo também de sabermos e, acima de tudo, aprendermos a sentarmo-nos frente a frente com os miúdos e falar com eles, aberta e sinceramente, sobre o que estamos a viver, sobre os nossos caminhos, as nossas escolhas e os nossos erros, sobre a responsabilidade que carregamos e que eles também têm nas suas mãos. Talvez seja até preciso algo mais radical, como mostrar-lhes o que é a guerra, o que é a fome, como no mundo, enquanto eles jogam e brincam, há crianças, mais novas que eles, que empunham armas, matam e morrem, vítimas, essas sim, de adultos egoístas e sedentos de poder, que, de humanos, apenas têm o carimbo da espécie.

Para o fazermos é preciso também, nesse tempo em que nos sentamos com esses miúdos, sabermos assumir as nossas responsabilidades e os nossos erros, os nossos medos e as nossas dúvidas, mostrarmo-nos humanos, homens e mulheres, vulnerabilizarmo-nos, sem receio que eles se aproveitem disso, sem receio de, também nós, termos de os responsabilizar pelas suas escolhas. Se formos capazes de mostrar o maior respeito por estes seres, associado a um profundo amor por nós mesmos, saberemos também exigir respeito e não permitir menos que isso, ensinaremos essas crianças e adolescentes a respeitarem o próximo, não porque é uma obrigação, mas sim porque se respeitam a si mesmos.

Isto implica, no mesmo sentido, e em sintonia com o início deste artigo, que se entenda que a energia masculina e a energia feminina são necessárias neste plano, que a supremacia de uma perante a outra é apenas um agudizar de um desequilíbrio, mas que, para que tal não aconteça, ambas têm de se conhecer, de serem trabalhadas, de se manifestarem na sua beleza e unicidade. Não há inimigos nesta história, não há supérfluos, certos ou errados, há uma multiplicidade de seres únicos que se congregam num projecto contínuo e brutal, que é o da humanidade, mas que, neste momento, precisa do esforço, do foco e do amor de cada um de nós.

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