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Portas escancaradas, medos fabricados

Em junho de 2024, o Governo pôs em prática um Plano de ação para as migrações, justificando ser necessário termos as portas abertas, não escancaradas. Três meses depois, o Chega organiza uma manifestação nacional contra a imigração descontrolada e insegurança e, no decorrer do aniversário da revolução republicana, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, relaciona alguns problemas sociais, como sem-abrigos ou crime, com a imigração. Entre outros exemplos que se poderiam dar, estes são suficientemente ilustrativos de uma nova perceção da imigração, que se enquadra mais como uma ameaça.

Tradicionalmente, Portugal tem sido um país de emigração. Isto é, por diferentes motivos, como económicos ou políticos, as pessoas emigravam para diferentes países, podendo posteriormente voltar ou não. Este padrão migratório verificou-se nos séculos XIX e XX. Mas, a partir de finais do século XX, na sequência da adesão à CEE, assiste-se a um novo fenómeno: não apenas continuamos como um país de emigração, como também passamos a ser um país de imigração. Os dados apontam já para cerca de um milhão de imigrantes que residem em Portugal.

Mas, afinal, há um problema com a imigração? Estamos a ser invadidos, no que representa um fluxo de imigração sem precedentes para a Europa?

Segundo o World Migration Report[1], existem cerca de 281 milhões de pessoas que são migrantes internacionais. Se compararmos com outros anos, de um ponto de vista absoluto, estamos perante um número sem precedentes de imigrantes desde 1970. Contudo, a população mundial não se tem mantido estática, tendo passado de 3,62 mil milhões para 8,1 mil milhões de pessoas, fazendo com que, em termos relativos, os migrantes internacionais nunca tenham sido mais do que 3,6% da população mundial.

Ainda assim, existe a perceção de que estamos a ser invadidos, no que representa uma época sem precedentes de imigração ilegal e requerentes de asilo ou refugiados que não o são verdadeiramente, usando da “boa vontade” dos países para os acolher ou de subterfúgios legais para se conseguirem estabelecer noutro país.

Em boa verdade, a maioria dos imigrantes cruza fronteiras legalmente, ou seja, com visto e, nalguns casos, com contrato de trabalho, não sendo verdade a ideia de que simplesmente aparecem do nada e entram, sem mais nem menos, como nos querem fazer acreditar os políticos oportunistas ou os meios de comunicação, que tendem a exagerar.

Os imigrantes deslocam-se, porque querem melhorar as suas condições de vida (e das suas famílias) e vão para onde são convidados ou têm oportunidade de ocupar postos de trabalho livres, num movimento que tem como destino o país menos desconhecido e onde exista alguém conhecido. A título de exemplo, a Carris Metropolitana já recorreu a outros países para recrutar motoristas, como também a Rodoviária do Lis, e alguns setores económicos dependem da mão de obra imigrante, como a agricultura, construção civil, limpezas, entre outros. Aliás, o facto de estarem legalmente inseridos no mercado de trabalho tem concorrido para o pagamento de reformas (maioritariamente a portugueses) e subsídios a quem mais precisa, como os 2677 milhões de euros em contribuições para a Segurança Social mostram.

Se olharmos para os países que mais acolhem imigrantes, veremos que, numa lista de 10, só 4 são europeus, estando os EUA (50,6 milhões), Alemanha (15,8 milhões) e Arábia Saudita (13,5 milhões) no top 3, o que parece contradizer a ideia de que a Europa é o centro de uma invasão.

Por outro lado, o que se fala e escreve sobre os refugiados, nomeadamente, que não o são verdadeiramente porque poderiam entrar nos países pelas vias “tradicionais” (pedindo vistos nas embaixadas), forçando assim os sistemas de acolhimento, é falso.

Ao contrário de um imigrante, a pessoa refugiada é aquela que é obrigada a sair da sua região por diferentes motivos, como guerras, perseguições políticas ou religiosas, mas também por catástrofes ambientais. Geralmente, se possível, os refugiados deslocam-se para outras partes do país de origem. E, nos casos em que cruzam as fronteiras, tendem a estabelecerem-se em países limítrofes, mais semelhantes do ponto de vista cultural, da língua ou da religião, por um motivo simples: a partir do momento em que a ameaça que os obrigou a sair desapareça, querem regressar.

Na Europa, por exemplo, o número de refugiados e requerentes de asilo aumenta apenas e quando existem conflitos ao nosso redor (alguns dos quais consequência de ingerência ocidental), como é disso ilustrativo o movimento de refugiados com origem na antiga Jugoslávia, Síria e, agora, na Ucrânia.

Segundo os dados das Nações Unidas, existem cerca de seis milhões de refugiados ucranianos na Europa. Destes, 1,2 milhões estão na Rússia, 1,1 milhões residem na Alemanha, 957,5 mil escolheram a Polónia, enquanto 370,9 mil optaram por viver na Chéquia. Portugal está no outro lado do continente, tem uma cultura e uma língua que não são tão semelhantes e isso reflete-se no número de refugiados (63 035). Se passarmos para os refugiados da Síria, por exemplo, a grande maioria está na Turquia, o país que mais acolhe refugiados, seguido de Colômbia, Paquistão, Uganda e Alemanha.

Todos os dados apontam para uma tendência constante de número de migrantes internacionais, inferior a 4% da população mundial, sendo, na maioria das vezes, entradas legais (visto e contrato de trabalho ou perspetiva de inserção no mercado de trabalho em pouco tempo). Portanto, não se pode falar num momento sem precedentes nos números de imigrantes, mesmo se incluirmos os refugiados e requerentes de asilos.

É inegável que a Europa assiste a um fluxo maior de entradas nas últimas décadas, que se justifica por alguns motivos. Em primeiro lugar, os fluxos migratórios europeus inverteram-se, recebendo mais pessoas do que a enviar (ex.: movimentos de emigração no século XIX até cerca de 1920 para colónias e países das Américas do Norte e do Sul), em virtude do crescimento económico do pós-guerra, generalização do Welfare state, como também pela política de convite a trabalhadores de outros países para preencher as lacunas de mão de obra. Por outro lado, a percentagem de refugiados relativamente à população mundial é inferior a 0,4% e a sua flutuação depende mais do número de conflitos nas suas zonas de origem. Como o continente europeu, a Sul e a Leste, está em fronteira com zonas em conflito, temos uma perceção que tende a ser distorcida, muitas das vezes alimentada pelos meios de comunicação e até por organizações internacionais. 

Em suma, a imigração é um fenómeno complexo que não pode ser reduzido a simplificações, como as que vemos diariamente. Os dados são claros e revelam que a maioria dos imigrantes se desloca legalmente e que estes contribuem de um modo significativo para o país de acolhimento, sendo, por vezes, convidados em consequência das necessidades do mercado de trabalho.

Enquanto sociedade, podemos (e devemos) discutir o tema da imigração, mas sem cair em narrativas alarmistas, que em nada contribuem para um debate informado e sério. Embora seja verdade que assistimos a um aumento do fluxo migratório, principalmente pela instabilidade político-económica nos países vizinhos, não se pode dizer o mesmo em relação a uma suposta “invasão” maciça. Essa é uma ideia que está longe de corresponder à realidade.


[1] Relatório de 2024

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