Deus sonhou que errava. Rodava e rodava e rodava as supernovas presas ao ábaco com que fazia cálculos ao equilíbrio entre a tristeza e a felicidade. No sonho, recomeçava muitas vezes a contagem porque o resultado era sempre igual: naquele dia, só um coração tinha sido feliz.
Não podia ser.
Não podia ser, por isso, Deus repetiu as equações: um. De novo: um. Mais uma vez: um. Irritou-se e atirou duas galáxias contra a parede do Universo.
Quando olhava para o mundo, via claramente os corações infelizes. Alguns pareciam cenários de guerra, ruínas cheias de cantos afiados prontos para cortar. Outros tinham pequenos buracos e fendas, o desamparo tinha mordido e arranhado até conseguir furar. Outros ainda estavam vazios, com demasiados sonhos entornados à sua volta.
E ali no meio, o pulsar. Deus via os corações felizes como flores a abrirem à noite, como a intermitência da luz da lua a bater em escamas que serpenteavam na derme dos rios. E não via mais do que um. Era verdade, só um. O ábaco não mentia, ele não se enganara: quando olhava, o mundo era um cemitério com um só fogo-fátuo.
Deus percebeu que afinal o seu erro não tinha sido nas contas.
Fora na geografia do músculo cardíaco, que não deixava entrar todas as sensações da mesma forma, algumas não sabiam encolher-se para passar pelas veias e inundar os ventrículos.
Ou teria sido na anatomia das sensações? Agora percebia que a beleza era demasiado leve e grande para a caixa torácica, que o horror tinha um tecido tão duro e tão cheio de espigões que conseguia perfurar mais facilmente e custava ser arrancado.
Talvez o problema fosse a receita da contemplação, a vida era gigante mas os olhos gastavam a sua curiosidade em tão pouco tempo, o entusiasmo oxidava-se ao mínimo sinal de chuva.
Olhou para o ábaco, para as galáxias rotas no chão do Universo e por primeira vez questionou-se.
Deus caiu do sonho e levantou a cabeça sobressaltado. Tudo parecia normal. Coçou as orelhas. Aninhou-se melhor e ronronou até voltar a adormecer.