Há duas semanas, em Bruxelas, bastou um protesto de produtores de leite para alterar a qualidade do ar da cidade. O leite em pó, espalhado em frente às sedes do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, foi suficiente para tornar o ar irrespirável para decisores políticos e funcionários europeus.
Certamente que este não foi o evento de maior destaque nos últimos tempos. O que mais nos preocupa são as correntes que chegam do outro lado do Atlântico. As consequências na ordem internacional, na defesa de valores de liberdade e democracia que partilhamos e a vulnerabilidade dos Estados europeus em assuntos como a defesa ou o comércio mundial redirecionam a nossa atenção para os EUA.
As dúvidas quanto ao modelo de atuação do Presidente norte-americano foram esclarecidas: Donald Trump procura fazer valer os motes da sua campanha eleitoral. A questão que se levanta é de quais os efeitos para a Europa, até agora?
A direita nacionalista procura ler a vontade de mudança dos eleitorados, uma visão mais fechada e protetora do papel do Estado e vê, na vitória de Trump, o prenúncio de vitórias futuras para o movimento na Europa. Daqui nada de novo, seria espectável que Marine Le Pen se associasse ao líder norte-americano ou mesmo que os defensores do Brexit também o fizessem.
Interessante é a nova narrativa que está a surgir. Merkel foi uma das primeiras líderes a aproveitar o vento para navegar à bolina, numa oposição clara ao americano, quando afirma que os Europeus “são donos do seu próprio destino”. Ao fazê-lo, a chanceler alemã fala a uma só voz por todos os europeus, numa frase que engloba um diferencial de valores, que se sustenta numa autonomia europeia.
Outros líderes europeus seguiram a mesma rota, até nas primárias francesas, em que Emmanuel Macron assume uma posição de defesa clara dos ideais da UE. O mesmo se assiste nas instituições europeias. Dijsselbloem, Presidente do Eurogrupo, afirma que a eleição de Donald J. Trump é a oportunidade da Europa trabalhar em conjunto e de forma mais eficiente. A Comissária europeia Cecilia Malmstrom reconhece que a política de protecionismo americano está “condenada a falhar”.
É este o desafio de que a Europa estava à espera?
O primeiro desafio à autonomia europeia passou pela tensão entre a Sérvia e o Kosovo. Para este caso, trazemos um outro ator que se encontra acordado no tabuleiro europeu: Vladimir Putin. A passagem de um comboio sérvio pelo Kosovo com as palavras “Kosovo é Sérvia” em vários idiomas, reavivou desentendimentos do passado recente. A suspeita que se levanta é a da intenção em precipitar um conflito, devido a este incidente e apelar ao aliado russo para combater ao lado da Sérvia.
Com a garantia de que os EUA se irão esquivar de uma intervenção num eventual conflito, a Alta Representante dos Negócios Estrangeiros, Federica Mogherini, chamou os representantes dos dois países para dialogar, de forma a alivar as tensões, numa missão que, até agora, alcançou o seu objetivo.
Vivemos tempos de enorme interesse político, de mudanças constantes e decisivas para o caminho que o projeto europeu e a democracia na Europa irão seguir. As ameaças ao projeto e ao nosso estilo de vida continuam a surgir, pelo que a atenção está nas motivações dos europeus e dos respetivos líderes políticos.
O relato destas primeiras semanas do mandato de Donald J. Trump poderia ser sobre o clima de incerteza instalado no continente europeu e como facilmente se fomenta o medo, porta de entrada para regimes nacionalistas como o deste. Mas não é.
Os ventos do novo continente podem agitar as nossas ideias e conceções, mas, por outro lado, podem também retirar o projeto da atrofia de entendimento que tem vivido, no combate a uma ameaça comum. O ar que passamos a respirar pode muito bem vir a ser o de determinação, de maior vontade coletiva e de orgulho pela diferença que é ser europeu.
Não devemos julgar com valores etnocêntricos ou de acordo com um embotado Zeit Geist? Nem tudo é relativo? Ponho as questões à mesa.