À margem

Quando olhas para o outro, há olhares que se distinguem. Porque tocam nalgum ponto sensível teu, porque te intriga, porque te atinge em memórias falíveis e guardadas em baús poeirentos. Guardamos memórias nas prateleiras como quem guarda os livros que um dia gostaria de ler mas nunca lê.

Há um olhar que sei reconhecer sempre. O olhar de quem se sente sozinho, incompreendido, diferente. Não porque não saiba que é especial como qualquer outra pessoa, mas porque não se enquadra num padrão social, porque gosta de ler, porque gosta de prestar atenção à forma como o outro se sente, porque não tem dinheiro para telemóveis ou roupas ou equipamentos top, porque gosta de arte ou séries que os outros consideram esquisitas.

Há uma certa dignidade no adolescente que sofre de bullying, neste olhar adolescente de quem está à margem. Ele tem de se levantar todos os dias de manhã e enfrentar um dos principais sintomas de uma sociedade bélica e que está doente: as críticas dos outros, os olhares dos outros. Tem de lidar consigo e com tudo o que envolve estar a crescer e não se ser nem criança nem homem. E ai dele que seja gordinho! A sociedade quer-se fit e as formas redondas passam da aceitação que deveria ser normal do outro para exemplo de vergonha.

O perigo da humilhação que faz parte do bullying é que é normal no dia-a-dia do rapaz do olhar perdido e digno. Todos os dias ele enfrenta bocas, caras, gozo, solidão e normalmente só se torna centro das atenções quando está fisicamente no centro de uma roda de outros rapazes e raparigas… que muitas vezes se pode transformar em bélinhas, pontapés, chapadas e sempre em humilhação verbal.

No entanto, há que enfrentar e calar. Firme. O rapaz é rapaz e em breve se tornará homem. E homem não chora, homem aguenta. Ouve que quando se leva tem de se dar de volta. Só que não gosta de violência. Gosta de paz e palavras e músicas e ficção e estar sossegado. E sim, gostaria de ter amigos. Talvez uma namorada. Remete-se no entanto ao silêncio. Cala porque leva tanto e tudo dos outros. Cala porque não consegue receber nem dar nada.

A sociedade onde vivemos é exigente. Esquecemo-nos com facilidade que temos de aceitar o outro. Que é nas diferenças do outro que vivem as minhas. Que a vida e as pessoas e os lugares valem a pena porque são díspares, porque nada é igual, mas tudo faz parte de um conjunto perfeito. No entanto, o medo e o desconhecimento de nós próprios provocam a competição quando a única competição deveria ser connosco próprios.

Quando há uma recusa em fazer parte de uma esquema social, na maior parte das vezes porque simplesmente se é, o preço a pagar é caro.

Os rapazes de olhares perdidos crescem. E felizmente também encontram boas pessoas no seu caminho. Às vezes a família, alguns professores, auxiliares. Alguns amigos.

Quando se tornam homens, as cicatrizes, as vozes, o escárnio continuam lá. E apercebem-se que também há bullying quando se é adulto. Só que sobreviveram. O olhar agora é outro. Só têm de arrumar as memórias bem no fundo das prateleiras.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Eco Label – Produtos amigos do Ambiente

Next Post

O ponto da felicidade

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Read next

Comer fora

Almoçar ou jantar fora, mesas com história e estórias. A origem exata dos restaurantes é difícil de apontar.…
resort, beach, seaside resort

O outro lado da guerra

Uma cidade que se levanta e dorme sob o som de bombardeamentos, as suas ruas despojadas de pessoas geram um…