Moulin Rouge!

15 anos depois da sua estreia – que aconteceu a 18 de maio nos Estados Unidos e a 5 de Outubro em Portugal de 2001 -, parece-nos credível defender que Moulin Rouge ainda se sustenta como o melhor musical, ou pelo menos, o mais importante do século XXI, quer por desprender-se de um passado, quer por toma-lo, simultaneamente, como base fundadora da sua inovadora e arrojada estética cinemática.

Recentemente exibido na Cinemateca Portuguesa no programa do ciclo “São Todos Musicais”, Moulin Rouge foi o terceiro e último filme de uma bem sucedida trilogia titulada ‘The Red Curtain Trilogy’ e que permitiu, de modo inesperado, a que o seu cineasta, o australiano Baz Luhrmann (nascido em 1962), impusesse a sua visão consistente dentro da conservadora lógica de Hollywood. Depois do inteligente, mas leve Strickly Ballroom – Vem Dançar (1992), ainda realizado no seu país natal, e do tão popularmente admirado Romeu + Julieta (1996), adaptação moderna da peça de William Shakespeare com Leonardo DiCaprio e Claire Danes, com Moulin Rouge, Luhrmann parecia oferecer a aglomerado de actores a oportunidade das suas vidas, no sentido de ganharem o tão merecido estrelato, mas vamos por partes.

Moulin Rouge

Contextualizando historicamente, as filmagens de Moulin Rouge começaram em 1999, com orçamento situado aproximadamente entre os 52,5 milhões de dólares, mais elevado quando comparado aos seus predecessores. Em paralelo, enquanto a estreia era adiantada uma e outra vez, por alguns problemas nos estúdios e por Nicole Kidman ter-se lesionado (por duas vezes!), outras produções estavam de vento em pompa, nomeadamente a trilogia de O Senhor dos Anéis, de Peter Jackson e as prequelas de Star Wars, de George Lucas, estas últimas das quais Ewan McGregor era também protagonista, na pele de Obi-Wan Kenobi. Enquanto essas remetiam a uma herança directa das superproduções de Hollywood, do universo de fantasia e de ficção científica, Moulin Rouge procurava brincar com o género musical e contar muito mais do que uma história de amor. Todavia e por certo, esta veio a tornar-se a história de amor, um amor avermelhado e ensanguentado, do século XXI.

O filme segue a vida de Christian (Ewan McGregor), um jovem inglês pobre, aspirante a poeta, que, em 1899, decide mudar-se para Paris, estabelecendo-se no boémio bairro de Montmartre. Longe das proibições e exigências da figura paterna, Christian contacta com os artistas do mundo do espectáculo que desesperam por uma mudança de ideais na viragem do século. Naquele local, e mais precisamente, na pensão onde fica alojado, Christian conhece Toulouse-Lautrec (John Leguizamo, o actor que dá voz a Sid em A Idade do Gelo), e que o convence a reescrever a peça Spectacular, Spectacular!, a ser apresentada a Harold Zidler (Jim Broadbent) e à cortesã Satine (Nicole Kidman), duas figuras nocturnas do famoso cabaret Moulin Rouge.

Não à primeira vista, mas quase, Satine e Christian apaixonam-se, devido a uma confusão deste último pelo Duque (Richard Roxburgh), e o triângulo amoroso logo se impõe. Mesmo assim, o Duque é de tal modo ridicularizado, demorando a aperceber-se do clima de amores que paira nas suas costas. Ademais, a doença de Satine trará a tragédia, com notáveis influências da narrativa de Alexandre Dumas (o filho do escritor de Os Três Mosqueteiros com o mesmo nome) e da sua obra magna La dame aux camélias (romance publicado na França, em 1848)acerca da paixão proibida do próprio por uma cortesã, vítima de tuberculose.

Moulin Rouge

De facto, Moulin Rouge ‘brinca’ demasiado com o seu espectador e com o reconhecimento deste por elementos da cultura popular de massas, quer seja do cinema, da literatura ou da música, sendo sobretudo nesta última que o filme se sustenta. De estética musical excessivamente abusiva, se assim quisermos entender, Moulin Rouge enquadra-se num estilo até então inigualável, o do musical-video. E isto quer dizer o quê, mais precisamente? Bem, Moulin Rouge, recorre aos funcionalismos televisivos do videoclipe e faz uma espécie de mash-up (nada deselegante, pelo contrário) de songs dos The Beatles, Madonna, David Bowie, Phil Collins, U2 e Whitney Houston. Sem esquecer as alusões acertadas a Marilyn Monroe e ao seu “Diamonds are a Girls Best Friend”, parte do filme Os homens Preferem as Loiras (Howard Hawks, 1953) e a Julie Andrews e à primeira sequência de Música no Coração (Robert Wise, 1965).

No processo de colagem de uma imagem à outra, que alguns entendem ser uma montanha russa despropositada, talvez porque inadaptados a uma arte em constante mutação, Moulin Rouge agrega as suas qualidades, e quantidades, em formas e fórmulas do videoclipe tão privilegiado pela MTV e que muitos passavam certamente horas a assistir. Nas suas cores pomposas e nos enquadramentos dos atores até pode parecer que assim o seja, não obstante, sentimos que Moulin Rouge não se limita a ser espelho do médium televisivo. O seu brilhantismo, está vinculado à capacidade de romper com parâmetros clássicos, tradicionais e convencionais dentro do sistema cinematográfico, em muito graças à visão do seu cineasta. Com efeito, Moulin Rouge vai buscar a Hollywood, um aspeto particular do género melodramático, o excesso. Desde o luxuoso guarda-roupa – foram criadas mais de 300 peças de vestuário – à frenética montagem de imagens e sons virtuais, sem esquecer as interpretações dos atores, este musical corrobora-se como puro espectáculo cinematográfico.

A gestualidade, talento vocal e coreografia dos actores, com destaque para Nicole Kidman e Ewan McGregor, são de um contínuo perpetuante e electrizante. Não temos a inserção da música num aparte, como acontecia nos musicais dos anos 30 e 50, principalmente aqueles protagonizados por Ginger Rogers e Fred Astaire em que haveria um corte, uma descontinuidade no plano narrativo para introduzir uma canção acompanhada por uma dança (em sapateado). Temos um continuum, um ritornelo que nunca se extingue.

Moulin Rouge

Em relação ao casal protagonista há uma química demasiado autêntica para pensarmos que não seja real. Primeiro, Nicole Kidman arrisca tudo, e mais alguma coisa, e até quando é filmada em grande plano parece um misto de atrizes do star-system como Marlene Dietrich, Marilyn Monroe e Grace Kelly. Na época, a actriz queria provar o seu talento, para se desapegar da imagem de esposa de Tom Cruise, com quem estivera casada até ao início de 2001. Poucos meses depois aguardava-lhe uma nomeação ao Óscar, a perder para a interpretação de Halle Berry (vitória bastante questionável sobretudo pela questão burocrática e de cor). Seguiram projectos bem escolhidos como As Horas (no qual venceu o Óscar de Melhor Actriz), Dogville, Cold Mountain, perdendo o seu terreno de estrela com a participação em comédias com estilo mais ou menos kitsch – Casei com uma Feiticeira, Mulheres Perfeitas ou Engana-me que eu Gosto são os lastimáveis exemplos -, a merecer novamente os nossos aplausos por The Paperboy ou O Outro Lado do Coração.

Já Ewan McGregor queria desprender-se do seu Trainspotting (Danny Boyle, 1996), com um poder de jovem galã inegável, bem como a América e o público em geral aprecia. Atente à canção “Come What May“, a única original do lote e redigida pelo próximo realizador. Já Jim Broadbent é de longe a personagem secundária de maior peso, conquistado o espectador, como tão bem sabe, pelas suas versões “Like a Virgin” e de “The Show Must Go On”, num misto performativo de comédia e drama e a fazer as expressões mais teatrais.

Dentro da repetida teatralidade (e musicalidade), Moulin Rouge pode ser encarado como arquétipo dos projectos que se seguiram de Baz Luhrmann (o requintado e modernista O Grande Gatsby e o familiar Austrália, também com Nicole Kidman). O seu interesse pelos pormenores mais e mais detalhados são de uma manifestação artística soberba, só como o cinema é capaz de cumprir, misturando as diversas artes na mais poderosa delas. Mesmo assim reconhecemos que deixa alguns espectadores desconfortáveis, ao que a esses em vez de assistirem às adaptações musicais contemporâneas, deverão ficar pelas clássicas, por exemplo pela versão Moulin Rouge de 1952, dirigida por John Huston com José Ferrer e Zsa Zsa Gabor.

Em suma, são 15 anos cumpridos de um filme que não estão em nada cristalizado numa época, já que se projeta para o hoje (e sem dúvida para o amanhã) como um dos espectáculos mais ambiciosos, criativos e mágicos que o cinema nos ofereceu. Talvez fosse melhor celebrá-lo com a frase ‘the greatest thing you’ll ever learn, is just to love and be loved in return‘, mas sentimos poder cair nas usuais lamechices. Celebrar Moulin Rouge é, nalgum sentido, (re)cumprir o desejo de Luhrmann de que os seus actores precisam de deixar para trás alguma coisa e voar para longe (como a música que Kidman canta), a fim de, num futuro próximo, serem ovacionados como dantes.

Moulin Rouge
poster do filme

Ficha técnica

Ano de Produção: 2001/ Título português: Moulin Rouge!/ Título original: Moulin Rouge!/ Realizador: Baz Luhrmann / Argumento: Craig Pearce & Baz Luhrmann/ Elenco: Nicole Kidman, Ewan McGregor, Jim Broadbent, John Leguizamo, Richard Roxburgh, Jacek Koman e David Wenham/ Música: Craig Armstrong/ Duração: 128 minutos

Share this article
Shareable URL
Prev Post

A efemeridade do tempo

Next Post

Os nossos amigos no Nepal

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Read next

Prohibitos autem amorem

O vento entrava-lhe por dentro dos cabelos dourados e entrelaçava-se nos caracóis grandes e caídos. Ele…

A fotografia

Hoje tirar uma fotografia está ao alcance de qualquer um. Os telemóveis dispõem de aplicações que as conseguem…