Um jogo macabro

Esta é uma crónica sobre o cancro, aquela palavra com seis letras que aterroriza milhares de pessoas e faz virar a cabeça a outras tantas. Um vocábulo com um poder tão forte que mesmo que se tente esconder ou camuflar será sempre descoberto. Um termo genérico para englobar inúmeras doenças que conseguem ser tão ditadoras e manipuladoras que escravizam quem as padece. Arrastam as famílias, os amigos e os efeitos secundários são sempre nefastos e perniciosos. Esta é uma crónica sobre amizade, muita saudade e, sobretudo, amor.

Primeiro que tudo, temos que o apresentar. O cancro deve ser tratado por tu e ter nome próprio. Ou dois para se poder ralhar sempre que passar das marcas, o que faz com mestria e prontidão. Esta proximidade permite que exista uma relação de concorrência perfeita, o que sabemos ser uma utopia, mas insistimos para que o combate pareça leal. Nunca o é nem o será. Simplesmente é uma guerra que nunca está ganha, apesar de algumas batalhas serem a favor dos sobreviventes.

Sou uma sobrevivente. Ou melhor, sou um soldado no exército anónimo diário. A tal junção de letras e sílabas era-me conhecida, mas passou a íntima e decidiu partilhar o meu dia-a-dia como se tivéssemos uma relação do tipo romântico. Instalou-se no meu domicílio e mesmo não pagando renda, dá opiniões sobre tudo e quer comandar a minha vida. Não o permito. Sou das resistentes, das resilientes. Decidi tratá-lo por sacana e espero ter uma longa vida para que ele assista, derrotado e envergonhado, à minha vitória.

Nesta caminhada, encontro parceiras de quartel e de arma. Outras serão de ramos diferentes, mas sempre com a mira no inimigo que espreita sem pudor. O equipamento é pesado e as novas técnicas são sempre desconhecidas, mas com a ajuda dos seus ensinamentos, da sua experiência e do seu companheirismo, tudo parece ficar mais leve e fácil de transportar. A carga torna-se parte de nós e os pequenos truques, as pequenas ferramentas que inventamos acabam por ser mais úteis, quando partilhadas.

Conversas que se encetam e laços que se criam. De início, há sempre a tendência para não se falar do assunto, para se viver a sua situação com a dignidade da dor, mas passa, quando se percebe que mais alguém está no mesmo limbo, na incerteza dum tempo que será sempre desconhecido. De seguida, vem o contacto que até pode ser virtual. Há sempre forma de se estar em sintonia, em falar a mesma linguagem, em saber que não se está só. Nesta guerra, as armadilhas são tantas que os exércitos precisam de novos recrutas. E acabamos por nos conhecer.

É a alegria reencontrada, uma espécie de adolescência contínua que permite que se troquem beijos e abraços como se o mundo ainda estivesse por abrir. Um presente que pode ser maravilhoso. Apesar de sermos desconhecidas parecemos amigas desde sempre, desde uma infância colectiva que nunca existiu, mas que entendemos como tal. Uma forma de linguagem que se compreende mesmo não sendo falada. E, então, tudo é possível como nos sonhos onde a perfeição e a impossibilidade fazem todo o sentido. São momentos de algodão, pitadas de felicidade que se vivem em conjunto.

A elas se diz que tudo vai ficar bem, que é somente uma fase, que tudo fará sentido. São palavras sentidas e profundas que se querem a funcionar. Talvez sejam uma pequena magia de fadas modernas e afáveis. E nunca mais ficamos sozinhas. Há sempre um ombro que se estende, uma mão que se toca, uma voz que se ouve, uma asa de anjo que se sente. Nesses momentos, nada mais existe a não ser a união, a força da amizade e o desejo do fim da tormenta. Somos sentinelas que estamos sempre de plantão.

Somos mortais e sem poder de controlar a nossa vida. Escapa-se sem se dar conta e afinal a nossa função é de marioneta, de boneco que é manobrado por entidades maquiavélicas que se entretêm a desfazer sonhos, a estragar planos, a arrasar vidas que se iniciam em caminhadas de luz. O caminho turva-se e saltam pedras a toda a hora.  São piroclastos de células envenenadas de ódio que se multiplicam a uma velocidade furiosa. Acertam nas mais frágeis, nas menos preparadas que são derrubadas, ceifadas pela madrasta que a todos leva sem aviso. Inevitavelmente tombam de vez. Já não se levantam e pelo chão fica a dor que nos consome para sempre.

Prefiro pensar que estão num outro local, que me ouvem ainda melhor e que posso estar sempre em contacto com elas. Será como uma tempestade só que esta luz e cor são de satisfação e contentamento, uma exaltação por nunca mais nos separarmos. Relâmpagos de algo que a alma sabe apreciar. O coração é elástico e há espaço para todas, para as que chegam e para as que já cá estavam. Imagino um local tão fantástico que até mesmo as janelas dão acesso directo a qualquer coisa que se queira. Simplesmente estão mais longe, num sítio onde não as consigo ver, mas sei que estão. Sinto-as.

Passam a ser os nossos anjos pessoais, uma guarda que está sempre presente e que não queremos dispensar. São asas suaves que nos tocam na face e nos segredam pequenas palavras de incentivo retribuindo as que tínhamos usado: vai dar certo, não te esqueças que estou sempre aqui. Fechamos os olhos e todas as nossas conversas, os nossos risos e os segredos continuam no mesmo espaço de arrumação, nos armários das saudades e das memórias boas. E voltamos sempre que queremos e precisamos.

Mantenho-as no grupo chegado dos amigos e até me conforta saber que a vida lançou a armadilha para nos conhecermos. Antes era bem mais pobre, agora tenho esta riqueza que não se entesoura, mas que encanta. Continuo a falar com elas, conversas que só nós sabemos. Conto-lhes o que tem acontecido e como algumas conseguiram encontrar o caminho certo onde havia a lama muito escorregadia. Festejamos todas as vitórias e choramos todas as derrotas. E ainda ficamos mais unidas num destino que não é nosso.

Claro que o egoísmo nos diz que queremos que elas estejam sempre presentes, que as possamos tocar, mas existem outras formas, mais elevadas de comunicação que servem o mesmo propósito e que até facilitam a prestação. Estão agora sempre disponíveis e prontas para a conversa que quisermos encetar não precisando de marcar hora e os pensamentos acabam por ser mais sensíveis. Os filtros deixam de ser necessários e até escutam o que pensamos. Claro que sei que é um artifício que encontrei, mas, de certa forma, conforta-me e dá lento.

Não há descanso nesta guerra com este inimigo poderoso e traidor. Obriga-nos a uma constante vigilância, a olhar em todas as direcções, a ter cuidados redobrados com tudo o que se possa fazer. Nenhuma guarita é suficientemente alta para se poder estar confortável com o que se avista. Chega sem aviso prévio e faz tudo o que bem entende. Um mal-educado e sem maneiras que pensa que é o rei do universo. Não podemos deixar que essa jactância domine a que a sua altivez nos destrua. Não permitiremos.

Choro as que se foram, as que ficaram apanhadas nesta teia de mal-entendidos da vida. Como é que isso pode estar a acontecer? A vida é tão bela e tão cheia de detalhes que era demasiado cedo para terem saído de cena. Este jogo tem uns parceiros mafiosos e todo o cuidado é pouco. Não se joga a pares, que é mesmo individual, mas tendo quem nos olhe nos olhos e nos faça o sinal certo é sempre mais reconfortante e gratificante. Tudo é aleatório, mas chega a uma altura que cansa. Podias dar um intervalo, sim? Ouviste grande sacana?

Para elas, as meninas que já não podem chorar nem sofrer, esta é a minha singela homenagem. Viver com prazo de validade inscrito na pele não é fácil. Por mais que se queira apagar existe uma espécie de reciclagem que o coloca sempre à tona. É como viver à beira de uma barragem que está prestes a transbordar. Força, foco e fé são palavras que usamos para nos motivar. Um dia talvez volte a estar com elas, de modo diferente, mas por ora continuo com as nossas tão úteis tagarelices que tanto apreciamos.

Afinal o que sabemos nós sobre a vida? Tão pouco e sempre com enormes hesitações. Somos crianças que nunca param a sua aprendizagem, somos alunos que teimam em não aprender certas matérias, as mais complexas e dolorosas. Contudo, no fim do período temos a consciência tranquila, porque sabemos que demos o nosso melhor e que foi tão gratificante ter passado todas as cábulas às amigas que fomos fazendo. E este amor peculiar, a amizade verdadeira, preenche-nos o vazio que inevitavelmente acabamos por sentir quando uma de nós é apanhada, assim, desprevenida na curva da vida. Até um dia…

Game over.

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