Construir a casa pelo telhado

Esta semana o Público noticiou que o Governo suspendeu as candidaturas aos estágios profissionais para jovens, enquanto as novas regras, que brevemente entrarão em vigor, são negociadas. Este é um procedimento absolutamente comum nestas situações e transitório. Certo, a não notícia está dada, agora vamos ao que interessa.

Um dos maiores problemas que Portugal tem, neste momento, é, sem dúvida, a taxa de desemprego e a criação de emprego estável e sustentável. Os factores que levaram e levam a esta situação são inúmeros e poderia passar muito tempo a enumerá-los. Contudo, esta situação dos estágios profissionais, a meu ver, está no topo da lista das razões, porque continuamos com problemas na criação de emprego e desenvolvimento da nossa economia.

Antes de mais, sou totalmente a favor de estágios. Sim, sou, mas para aqueles que realmente necessitam deles. Um estágio é uma preparação de um jovem para a sua entrada no mercado de trabalho. Quando estudamos, vivemos num mundo essencialmente teórico e não conhecemos minimamente o que se passa no mundo “real”. Um estágio, que sim, deverá ser remunerado na mesma, é uma ponte para essa realidade. Defendo totalmente os estágios para os alunos universitários, ainda durante a formação, não no final, como uma espécie de trabalho, ou tese de fim de curso, mas durante todo o curso. É uma forma do aluno compreender melhor a área que está a estudar e perceber que às vezes a teoria é uma coisa e a prática outra bem diferente.

No entanto, os programas de estágios profissionais que têm existido são puro ilusionismo de criação de emprego, sendo usados para aproveitamento por parte das empresas para falhas nas suas necessidades de recursos humanos a um custo bem inferior do que o normal. Não quero com isto dizer que são só as empresas que estão erradas, mas também não é só o Estado que o está. Um trabalhador em estágio profissional é muitas vezes usado, durante os meses do processo como um faz tudo, com responsabilidades que um estagiário nunca deveria ter e com uma enorme falha em termos de acompanhamento. Não é muito difícil de perceber esta realidade, basta olhar para alguns anúncios de emprego para estágios profissionais para compreender que não são estagiários, pessoas que estão a aprender e a ser acompanhadas num processo, que as empresas procuram, mas sim juniores e, muitas vezes, séniores em preço de saldo.

Por outro lado, o próprio Estado não faz o devido acompanhamento dos processos, até porque não tem condições para o fazer, o que permite, por inércia dos próprios estagiários, muitas das vezes, que as empresas abusem e pratiquem ilegalidades, que, com um processo mais justo e mais coerente, impediria essas mesmas empresas de voltarem a ter apoios do Estado para a criação de emprego. Se maior parte dos estagiários explorados conhecesse os seus direitos e fizesse-se valer deles, mais razões haveria para que processos fossem abertos e as empresas e os seus responsáveis fossem chamados a responder perante as ilegalidades que se cometem.

Contudo, este é uma árvore com muitos ramos. O próprio conceito de criação de emprego que a economia portuguesa, sempre à espera das directrizes e dos apoios estatais, tem, assim como as políticas fiscais que estão desajustadas de uma filosofia de verdadeira e eficiente criação de emprego, são, sem dúvida, factores mais negativos que positivos, mas não são os únicos. É também a própria mentalidade do empregado, que aceita as condições a que é sujeito, que não abre a boca para reclamar, mas que depois queixa-se de tudo e de todos, assim como também esse mesmo desempregado que aceita quaisquer condições só pela necessidade. Sim, posso ser apelidado de fascista (está na moda) por isto, mas a realidade é que se houvesse mais pessoas a dizer não a estas situações, a denunciar o que está mal, estes programas já teriam de ser revistos e, quem sabe, já teríamos o seu final.

Continuamos a construir a casa pelo telhado, tornando o mercado de trabalho numa fábrica de emprego precário e sem resultados que promovam a sustentabilidade. A promoção de estágios profissionais com este formato são, a meu ver, a deturpação do propósito de um estágio, o que, honestamente não me admira, até porque existem outros tantos conceitos que estão deturpados, como a falácia de achar que é a faculdade que forma profissionais.

Não existem fórmulas mágicas, sem dúvida, nem perfeitas, mas a proliferação dos estágios profissionais não é a melhor de todas. É certo que este não é um problema puramente nacional, até porque muitos dos fundos para criar estes mesmos estágios vêm da União Europeia, mas a sua implementação na nossa realidade tem de ser pensada com um objectivo concreto de médio e longo prazo, pois de nada serve permitir às empresas ter operacionais constantemente em rotatividade com o apoio do Estado.

Todo o mercado de trabalho e a legislação laboral e fiscal a ela associada precisa de ser repensada para os dias que correm e deixar de viver numa realidade que foi conceptualizada como objectivo do pós-25 de Abril e que nunca existiu e que nunca existirá. O trabalho é hoje diferente, as necessidades das empresas são diferentes, mas tudo continua a funcionar como há 20 e 30 anos. Este é, sem dúvida, um tema, que merecia uma reflexão global e uma discussão cuidada, não uma negociação simples entre parceiros sociais.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Brasil 2014 – Até agora foi mais ou menos isto

Next Post

Se não vês Orphan Black, devias

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Read next

Memórias de uma serrana

Não se entusiasmem, que não é um remake, ou lá como se chama isso, do conhecido filme “Memórias de uma Gueixa”.…

Isto vai durar

1 – Os terríveis e cobardes ataques de que França, Mali e Camarões foram alvo colocaram a nu um sério…

Os tios

Todas as famílias são riquezas extremas onde alguns elementos brilham com mais luz, com uma intensidade tão…