Depressão é coisa de gente rica

Quando era mais nova achava que a depressão era para pessoas que não tinham nada para fazer.

Argumentava que, se estivessem realmente ocupadas ou se tivessem que trabalhar para pôr comida na mesa, não teriam tempo para entrar em depressão. Atribuí essa formação de ideias à minha educação. Nunca houve tempo para muito mais para além de trabalhar, contar o dinheiro que sobrava (quando sobrava) e tratar da casa. Cresci assim, e durante muito tempo insisti nesta ideia pré-concebida de que gente pobre não se podia dar ao luxo de adoecer.

A vida foi correndo e aos 25 anos, após um casamento precoce, muitas cicatrizes pelo meio e um divórcio, vi-me obrigada a voltar para casa dos meus pais sem dinheiro, identidade e amor próprio, frutos de uma relação disfuncional e abusiva que ditaria a necessidade de me redescobrir.

O caco em que me transformei e o vislumbre daquilo que havia sido outrora, conduziram a mais uma relação falhada, e decorridos dois anos, celebrei o meu 27º aniversário.

A festa consistia num jantar de amigos num restaurante escolhido com alguma antecedência — como sempre — para que nada falhasse, o bolo foi encomendado para cumprir a tradição de cantar os parabéns e a roupa comprada para celebrar mais um ano de vida. A vida que eu tanto queria agarrar, recuperar, viver…

Seria, em muito anos, o primeiro aniversário em que estaria sozinha. Sem par, sem metade, só eu. Eu, a encarar-me. Todos os meus amigos eram casais, sobrando, no real sentido da palavra, eu.

Os grupos foram-se organizando e entre conversas perdidas no ar, há uma determinada altura em que todos estão a falar. Todos os meus amigos de mais de 10 anos estão a jogar palavras fora, balelas sem interesse e já regadas de algum álcool, enquanto eu me sinto completamente sozinha.

Sozinha numa sala cheia de gente, onde o peso da minha vida até ali e das marcas que me deixou, pareciam já não caber naquelas conversas, naquelas pessoas, nas minhas pessoas…

Um vazio começou a formar-se dentro de mim, uma sensação de abandono, de perda, de solidão. Daquela que mais mói, daquela que dói tanto por se revelar a pior de todas as solidões: só numa sala cheia de gente.

Eu pairava entre uma e outra conversa que parecia não encaixar, que parecia não conseguir fazer parte. Não interrompi nenhuma para me fazer ouvir, achava que não tinha nada interessante para dizer, todavia só queria gritar bem alto que estava ali, que precisava deles. Não disse, eles não perceberam e eu desci as escadas do restaurante e fui até à casa de banho. Fechei a porta e chorei com força. Sentia-me sozinha no meu dia, aquele que deveria ser de celebração. Todos pareciam estar conectados entre eles, e eu a refém de mim própria, das minhas angústias, das minhas escolhas e das suas consequências. Mordia-me a dor de não pertencer, de parecer não fazer falta a ninguém. Faltavam-me as muletas e eu nunca tinha aprendido a caminhar sozinha.

Não precisava de ser o sol naquele dia, mas precisava que me ajudassem a recuperar o brilho.

Entre o bolo, as felicitações e a música, a noite foi ficando mais leve. Mas sempre que me sinto ir abaixo, lembro-me daquela pedra vincada no peito. Daquela dormência, daquela falta de entusiasmo, daquela inércia angustiante, sufocante, gritante que nunca tinha experienciado.

O tempo passou, a vida foi mudando e, em muitas formas, melhorando. Porém, sempre que ouço relatos ou histórias fatídicas sobre depressão lembro-me deste aniversário e da impotência que senti. Do nó na garganta. Da solidão. Do início de algo que poderia ter tido graves repercussões.

Os nossos amigos não sabem, nem adivinham tudo sobre nós. Se estamos doentes ou precisamos de ajuda, conforto, colo, às vezes temos de pedir. E eles vão estar lá sem julgamentos ou críticas.

Há lutas que ganhámos e outras que deixam marcas no campo de batalha para sempre. Passaram-se quase dez anos e não há um aniversário em que não me lembre do que aconteceu, em que não reviva a dor, o desconforto que a solidão fabricada na nossa cabeça consegue causar.

Hoje, com a minha filha ao colo, gosto de olhar para ela e para a minha tribo — que continua lá — e ouvir as conversas que se cruzam. O rebuliço, as histórias com mais de 20 anos que se repetem a cada jantarada, mas que arrancam sempre gargalhadas e suspiros que nos relembram que estamos a ficar velhos (e que bom que isso é!).

A vida aconteceu e já não me caem as lágrimas, agora o sorriso é tranquilo, é de paz, é de serenidade.

Celebremos a vida, sempre! Porque a depressão é coisa de gente rica, coisa de gente pobre, coisa de homens e mulheres, coisa de mães, pais e filhos.

A depressão é coisa de toda a gente, porque ninguém é forte o tempo todo.

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Comments 1
  1. Tinha 22 quando tive a primeira depressão. Dois episódios de perda seguidos, uma história familiar “particular”, muita ansiedade, muito medo e uma dor sem paralelo.
    Dizem que estas coisas também são hereditárias (olha a minha sorte). Dizem que temos boas vidas e que não há motivo para deprimir. Esquecem-se da pressão diária, da rotina, dos sonhos adormecidos… esquecem-se dos passos de coragem que resultaram em pouco ou nada.
    Há dias em que consigo sair do vazio e sentir, e considerar que está tudo bem… há outros em que só o silêncio. Temos vontade de ver pessoas, de falar e de viver, mas por outro lado é tudo tão cansativo que sair da cama por si só já é tão duro… Pedi ajuda no ano passado pela 5 ou 6 vez… sabe-se lá. Tenho medo do dia em que não perceba que tenho de pedir ajuda de novo. SOmos mais do que parece e andamos aí na multidão…
    Abraço

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