Três minutos

As ruas do bairro estavam desertas. O Verão empurrava as pessoas para casa. O bar do Alfonso parecia um forno, com as ocasionais moscas a pousar nos braços peganhosos e nas gotas de vinho e de cerveja que tinham escorrido para as mesas. Os homens abanavam-se com os jornais, as camisas abertas, os pêlos cinza colados ao peito, queixando-se daquele bafo que conheciam há anos. As mulheres preferiam ficar fechadas em casa, vestidas com tecidos leves, os leques a mexer a alta velocidade, algumas ventoinhas ligadas. Nas ruas ouvia-se a brincadeira dos miúdos, ecos da infância, e as temperaturas não lhes tocavam porque a fantasia era sempre tão maior do que a realidade.

Ao pé do bar do Alfonso, ele sentava-se na calçada que lhe queimava as pernas magrinhas e sujas. Os calções muito curtos e a camisola com uma nódoa antiga. Fingia desatenção e observava-a pelo canto do olho. Brincava com um pau, raspando no alcatrão – rrrrsc rrrrsc –, o ruído irritante a espalhar-se pela rua toda como que levado pelo calor, o suor a escorrer-lhe pelas costas e os olhos verdes gigantes a fugir para ela a cada dois segundos. Os amigos jogavam à bola e chamavam-no aos berros, provocando-o e insultando-o. Naqueles dias ele não queria saber – ignorava-os, empurrava-os quando eles tentavam puxá-lo.

Adorava ouvir a voz dela, melosa, uma voz de memória. Ouvia-a longe, suplicava: “Vá lá, Pepón.”

E o Pepón a sorrir como um lobo.

Rrrrsc rrrsssc

O barulho era uma brincadeira e também uma chamada de atenção.

Rrrrsc rrrsssc

Como se anunciasse: “Estou aqui.”

Rrrrsc rrrsssc

Mas ela nem se virava, nem o via, nem queria saber.

O Pepón esticava a mão e ela dava-lhe dinheiro. Pareciam-lhe muitas notas – ele perguntou-se quantas bolas conseguiria comprar, ou quantos bolos. Ela coçava um braço, limpava a transpiração que lhe incomodava o pescoço. Ele nunca via o que o Pepón lhe dava em troca, o punho dele a proteger bem aquele segredo dos dois, a passar o testemunho para a mão dela, que se fechava gananciosamente. A mirada do Pepón de vez em quando batia com a dele. Selvagem, perigoso, piscava-lhe o olho como quem ordenava sigilo. Sabia bem que ele nunca iria contar nada, nunca.

“’Tá ali o puto” despedia-se o Pepón.

Ela virava-se e a expressão de desespero tornava-se quase alegria. Alegria e pena. Alegria e pena e culpa. Uma miríade complicada que ele não queria ainda perceber, mas que já começava a magoá-lo. Ela aproximava-se dele devagar, pequena presa assustada.

“Como estás?”

Abraçava-o.

“E que tens feito? Estás aqui a brincar com os teus amigos?”

Mexia-lhe no cabelo comprido e sujo com gestos desajeitados.

“Gostas da escola?”

Uma carícia suave na cara dele. As mãos tremiam-lhe.

Ele nunca dizia nada. Nunca. E também nunca se esquecia do que ela dizia, cada uma das palavras marcadas a ferro quente na lembrança. Só a observava, só se deixava tocar, hipnotizado. Às vezes doía-lhe o toque dela, era ferida e cura ao mesmo tempo. Ela observava-o de volta, os olhos vidrados e perdidos. Depois, dava-lhe um beijo leve na cara e ia-se embora. A vista dele pousava nas costas dela até ela sair do bairro, até ele não lhe conseguir distinguir a silhueta – o que demorava muito tempo, porque ele reconhecê-la-ia em qualquer lado, a qualquer distância.

Ela nunca se virava para trás. E voltava a desaparecer durante dias, semanas meses.

Ele ignorava os amigos que voltavam a gritar com ele – precisavam de um guarda-redes, anda lá, vem brincar. Ele corria para casa, o peito cheio de sol, de tristeza, de emoção, arrastando o vazio e as asas que aqueles encontros de três minutos lhe davam. Abria a porta, entrava com o calor e contava à avó:

“Hoje vi a mãe outra vez.”

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