Sentiu a faca a entrar no peito dele. A cortar-lhe a pele e a desfazer a carne. A chegar-lhe à alma, ao coração, a até lhe roçar as costas, até o atravessar completamente. A ferir tudo nele. Era tão duro e ao mesmo tempo mole, era fácil e difícil. Somos tão frágeis. A cara de espanto dele, a boca num “o” perfeito, com os olhos muito abertos a não acreditar. Ela sentiu loucura e medo e nojo e prazer. Sentiu-se em câmara lenta, e ao mesmo tempo notou que era tudo muito rápido. A cabeça dela andava às voltas. Tirou a faca e voltou a espetá-la no peito dele, com força, queria magoá-lo. E outra vez. E outra vez. O sangue dele estava quente na mão dela. Era espesso. Ele tombou e caiu no chão. Ela quis continuar a magoá-lo, a esfaqueá-lo, a acabar com aquele sofrimento. Mas não o fez. Ele fechou os olhos, o peito não se mexia. A mão dela tremia e a faca caiu ao chão, mesmo ao lado do corpo sem vida dele. Sentiu-se vingada. Respirou fundo, estava extremamente cansada.
“Amor? Amor, estás a ouvir? Desculpa, desculpa! Eu quero explicar, não significa nada…”
A voz dele trouxe-a de volta à realidade. Olhou para ele. Ele tentava tapar-se com o lençol, enquanto se levantava para ir ter com ela. Tapado, como se ela não tivesse visto aquele corpo nu inúmeras vezes. Aquele corpo que tanto amava agora profanado pela outra. Olhou para ela, para a mulher que o acompanhava, também enrolada no seu lençol, tapada e deitada na sua cama, na cama deles, a olhar para o chão, para a parede, para todo o lado. Com vergonha. Pois, vergonha; tivesse pensado nisso antes. A sua melhor amiga. A sua melhor amiga.
Tinha aberto a porta do quarto, tinha-os apanhado em flagrante como se fossem malditos animais em época de cio, e o seu primeiro instinto tinha sido matá-lo. Matá-los aos dois!
“Amor?” repetiu ele, e tocou nela, devagar, a medo. Ela afastou-se dele, empurrou-o para a cama com toda a força e raiva que tinha. “Não!” gritou-lhe. Ele tropeçou no lençol e caiu na cama, destapando o corpo nu. O corpo nu dele, que agora lhe dava nojo. Teve vontade de vomitar.
Olhou de novo para eles, deitados naquela cama que era dela, naqueles lençóis que ela tinha mudado no dia anterior. Quantas vezes a teriam enganado? Quantas?
Virou-lhes as costas quando sentiu os olhos cheios de lágrimas. Não lhes ia dar o prazer de a ver chorar, de ver o quanto eles a tinham magoado. Não teriam esse poder sobre ela. Queria sair daquele quarto, daquela casa. Tinha de sair dali, de fugir dali. Parou em frente à porta. Podia fugir. Ou então podia ia buscar uma faca à cozinha e perder a cabeça, magoá-los tanto como eles a tinham magoado. Arrancar-lhes o coração.
Ainda não tinha decidido.
Olhou de novo para eles, a chorar. Invocou toda a raiva e traição que sentia e saiu do quarto.