Quando eu era caloira…

Muito se tem falado sobre a tragédia na Praia do Meco. Uma discussão acesa quando tudo leva a crer que a morte dos seis estudantes se deveu a uma praxe. Tema sensível. Propício a ser alimentado por muito tempo pela Comunicação Social. Eis a prova, toda a gente tem opinado. Mais uma vez, a praxe tem servido de bode expiatório. Não, não quero ser mais uma a opinar. Não estive lá e sei que ao não julgar não farei, seguramente, falsos juízos de valor. O que sei é que um dia fui caloira, uma experiência que em nada me traumatizou, e que talvez, por isso, me custe tanto a ler as barbaridades que têm sido escritas.

Acredito que quem é praxado num meio pequeno como eu fui, na Covilhã, seja uma experiência diferente. Quem estuda, ou estudou numa universidade pequena conhece o sentimento de proximidade. Todos se conhecem, nem que seja só de vista. Uma espécie de aldeia académica. O espírito é definitivamente diferente e não é que eu tenha estudado noutra universidade, bastou-me os testemunhos dos meus colegas.

Lá, na cidade da Serra, a Praxe dura um mês. Um mês intenso. De um momento para o outro, deixamos de ter vida própria. Sim, vida própria! Quando as aulas terminam, temos à nossa espera uma autêntica tropa de elite, pronta para nos “infernizar” a vida. É nesse momento que vestimos a t-shirt, com um burro estampado, desenhamos com batom as iniciais do curso na cara, damos as mãos e seguimos os corvos para almoçarmos todos juntos na cantina. Só com um garfo, só com uma faca, só com o pão, ou apenas as mãos, a tigela da sopa na cabeça (depois de consumida, claro), o colega que se ri e sobe para a cadeira a cantar o hino nacional com a língua de fora. Uma animação. Depois segue para a latada.

Pelo caminho, as vozes ficam roucas com tanta cantoria. Há o hino da universidade, do curso, aquela letra para fazer frente ao curso X, para o caso de nos aparecer à frente. Sim, porque o nosso é sempre o melhor, o verdadeiro espírito de vestir a camisola. Às vezes, ainda há tempo pelo caminho para ganhar uma garrafa de Adamado.

Na latada, entre agulhas e tecidos, mais cantoria. Tudo tem que estar pronto para o derradeiro dia. À noite, mais uma festa, a do “Pijama”, a do “Ridículo”, ou a do “Mister Caloiro / Miss Caloira”. Caso contrário há sempre as “Milícias” prontas para apanhar caloiros e praxar até de madrugada.

És colocado nas posições mais estranhas, não deves olhar para os “superiores” e até decoras o número do BI, para o caso de te pedirem para te apresentares. Claro que há sempre aquele “Chico esperto” que te tenta inferiorizar. É aí que deves saber marcar a tua posição. Recusei praxes, mas confesso que fiz umas quantas estúpidas. Respondi mal, porque não estava para ali virada, e até inventei que era hiperactiva tudo porque não me apetecia estar longos minutos na mesma posição.

Foram dias exaustivos, de muita correria, de muita festa, de convívio, de lamentos e de risos. Um convívio intenso, durante praticamente 24 horas por dia, que resultou, inevitavelmente, em amizades que duram até hoje. Se foi essencial para a minha adaptação? Foi. Se tive momentos em que me apeteceu desistir? Sim. Porém, também digo que fui muito feliz, enquanto caloira. Tudo é uma questão de atitude. Ninguém é obrigado a nada. Cada caso é o seu caso. A raiz da praxe consiste em conhecer novos colegas e se divertir. Se assim não for, algo está muito errado.

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