A Vida Inspiradora de Saint-Exupéry e Consuelo: Além do Céu e das Tempestades

Antoine de Saint-Exupéry, autor do clássico O Príncipezinho, teve uma vida fascinante e o rasto chega-nos através das páginas da biografia escrita pela sua esposa, As Memórias da Rosa. Neste livro, somos apresentados não apenas à extraordinária trajetória de Saint-Exupéry como piloto e escritor, mas também ao seu relacionamento profundo, inspirador e, tantas vezes, instável e perturbador com Consuelo. Um livro que me surpreendeu. O retrato mental que fazia de Antoine era talvez o de um unicórnio? O impossível nos escritores? O ser equilibrado que nos deixava conselhos sobre como gerir emoções e relacionamentos n’O Principezinho.

Consuelo conhece o futuro marido poucos meses depois de enviuvar de um diplomata latino-americano estabelecido em Paris. Não procurava o amor nessa altura da vida, mas foi, literalmente, em voo ao seu encontro. Saint-Exupéry conquistou-a com a sua impulsividade, sentido aventureiro e persistência. Consuelo, a mulher latina, de baixa estatura e algo contra a regras da sociedade francesa, não aceitou o projeto de se voltar a casar às primeiras tentativas.

Antoine assim que a conhece arrasta-a para o avião e brinda-a com acrobacias; uma antevisão do que a vida traria. Ficou indisposta, sim. Mas também adicta daquela loucura após um casamento previsível e sem laivo dessa instabilidade romântica associada aos espíritos criativos.

Consuelo veio a desempenhar um papel fundamental na vida e obra do escritor. Em “As Memórias da Rosa”, o retrato de Consuelo sobre a vida íntima dos dois, percebemos que para lá do amor e da devoção que uniam estas duas pessoas tão diferentes, Consuelo funcionou como âncora em terra firme. Ofereceu suporte emocional e estabilidade enquanto ele enfrentava os seus demónios interiores, sempre condicionado pela influência da família, principalmente da mãe; um people pleaser desajustado já que era em esforço que cumpria o calendário de eventos sociais a que o crescente sucesso o obrigava. A mãe do escritor foi relutante em relação ao casamento de Saint-Exupery com Consuelo. De origens duvidosas para os cânones da época e divorciada, a “Rosa” não foi acolhida pela nata da sociedade francesa. Este calcanhar de Aquiles foi sentido durante toda a vida conjugal. Consuelo esquivava-se de assistir a muitos eventos na companhia do marido; no livro nem sempre é claro se se trata de uma escolha dela ou de uma reação ao complexo de inferioridade que desenvolveu nesta dinâmica familiar.

Consuelo não estava imune aos desafios decorrentes da personalidade contraditória de Saint-Exupéry. A busca incessante por aventuras e a constante exposição a perigos como piloto resultaram em longos períodos de separação. Essas ausências deixavam Consuelo sozinha, com uma mistura de preocupação e solidão. A incerteza de quando e se o seu marido voltaria saudável e salvo das suas missões aéreas impôs um desgaste emocional significativo. Ela chegou mesmo a considerar o divórcio depois de ter-se envolvido com outro homem. Este sim capaz de lhe transmitir equilíbrio emocional e planearam uma vida juntos. Mas, no regresso do seu marido, todos os planos ficaram por terra. Decidiu-se novamente pela aventura. Foi novamente traída e abandonada. Lembrada inúmeras vezes como uma mãe, não como uma esposa. Tratada como a mãe que acolhe em caso de crise, mas da qual fugimos enquanto vivemos as nossas aventuras de juventude.

Além disso, a dedicação de Saint-Exupéry à aviação e à escrita muitas vezes isolava-o do mundo ao redor. Consuelo enfrentou momentos em que ele estava imerso na sua busca por inspiração, deixando-a sentir-se negligenciada e solitária. A dinâmica de poder levantou-me questões porque, claramente aos olhos da atualidade, não existe equilíbrio entre as aspirações e necessidades de ambos os parceiros. Senti sempre Consuelo como uma pessoa desconsolada na relação. Senti sempre Antoine como um Peter Pan, incapaz de conjugar a vida de casado com a sua vida criativa e a sua profissão arriscada.

Hoje, se relesse O Principezinho teria outros elementos em conta. Neste livro, Saint-Exupéry retrata um piloto que cai no deserto do Saara e lá encontra um pequeno príncipe de um planeta distante. A obra foi escrita precisamente nesse local quando o autor sofreu um acidente de avião e aí permaneceu enquanto aguardava por socorro. O piloto real versus o piloto personagem. Ambos compartilham o gosto por voar, ambos se equivalem num modo de vida desassossegado onde impera a curiosidade, a necessidade de horizonte. O alter-ego de Saint-Exupéry, o narrador aviador, enfrenta os mesmos desafios e dúvidas existenciais. Sente-se um estranho na Terra, incapaz de se conectar profundamente com as pessoas à sua volta. Essa sensação de isolamento e busca por significado é uma característica comum na vida do autor, que muitas vezes expressou a sua inquietação e a busca de um propósito mais profundo. N’O Principezinho a Rosa, uma das personagens, é dedicada a Consuelo. A Rosa arruinou a tranquilidade do mundo do pequeno príncipe quando o incitou a viajar, a deixar o seu cometa pequeno em busca de outros mundos. Foi a Rosa que incitou a visitar o planeta Terra. Como Consuelo funcionou para o escritor. Como a mulher-mãe que incita a sua cria a sair do ninho. Como a mulher-mãe que está sempre de braços abertos para os filhos. Mesmo após todas as traições e abandonos.

Uma dinâmica de amor-dependência que eu não esperava associar ao autor de tantas pseudo-frases de positividade e relacionamentos saudáveis. Afinal também se escreve muito sobre o que nos falta.

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