Fora de Horas, és o teu Trabalho?

“O que queres ser, quando fores grande?”  Quando o que queremos perguntar é: “Que profissão queres ter, quando fores grande?”  Eles, os miúdos, sabem disso e respondem sempre com um entusiástico “bombeiro”, “professor”, “médico”, entre outras profissões comumente aceites. Nós, os adultos, somos exímios a passar às crianças que nos rodeiam as nossas crenças, medos, estruturas sociais, sejam elas conscientes ou não. Esta história de sermos o que fazemos é uma das ideias pré-concebidas que tem passado de geração em geração.

Depois, quando esses miúdos crescem, perguntamos pelas notas e, por elas, preenchem-se fins de tarde com explicações, trabalhos de casa, trabalhos de grupo. O tempo livre para correr, brincar, explorar e descansar fica reduzido em cada ano escolar acabado.

Fazemos uma festa, quando entram na faculdade, porque não entrar ainda é desgraça de filho preguiçoso. Sentimos alívio, quando encontram um estágio, mesmo quando o tempo não é pago, é hora de mostrar empenho, iniciativa e espírito de sacrifício. Reconhecemos o sucesso dos pais e dos jovens adultos através do nome da grande empresa com quem estes assinam um contrato.

A notícia é que não chega! É preciso cair nas graças do chefe, uma renovação, depois precisamos de uma promoção, que vem um filho a caminho, e vamos a mais uma reunião, olha-se para o relógio e chega-se a casa de gravata atada a mais duas horas extraordinárias… quem faz duas, faz três. Ao fim-de-semana, há o luxo de um jantar fora onde os demais nos abraçam e dão palmadinhas nas costas pelo caminho de invejar na tal empresa. Na roda do rato acabamos por acreditar que somos de facto engenheiros, doutores ou o elemento-chave da empresa e que, ser o nosso melhor em prol de dígitos (mesmo que poucos) na conta bancária é tudo o que podemos ser.

Podemos dizer que a grande maioria das pessoas, em Portugal, trabalha com contratos de 40 horas semanais, sem contar com horas extras. Sempre achámos isso o normal, afinal estamos a treinar para essas 8 horas por dia desde a altura da escola. E se isto não é já mau por si, ainda continua a ser mal visto sair a horas ou faltar porque há um filho que está doente.

Doentes ficam estes adultos que trabalham fora de horas, desmarcam férias e ainda demoram cerca de uma hora em trajetos casa – trabalho – casa. Nem todos acreditam nisto, ainda há quem continue a dar lustro a estes egos laborais. Como? Não sei!

Será mesmo que o que queremos é ter o presidente da empresa no nosso funeral? É que, muito provavelmente, fazemos por ele mais sacrifícios do que pelos nossos companheiros, familiares e amigos. A pergunta parece dramática, e é. Contudo, mais dramático pode ser pensar na resposta, e saber que a realidade é dura e o que a empresa leva ao teu funeral é uma coroa de flores, a empresa não pode parar. Pára tu, enquanto podes, trava crises de ansiedade, não te queiras apresentar à síndrome de Burnout, mostra às crianças à tua volta que o trabalho não engole pessoas.

A mudança tem de começar dentro da cabeça de cada um de nós, é preciso reaprender o tempo, e ensinar o cérebro a ficar feliz com um filme no sofá, com um passeio à beira-mar e saber que o podemos fazer todos os dias. Vamos festejar o jantar em família aos dias de semana. Vamos trazer a nós a criança que fomos, que arrumava as coisas à pressa quando tocava para a saída e, ser tão pontuais na hora de entrar como na hora de sair. Vamos deixar que as crianças que não sabem o que querem “ser” quando forem grandes, possam ser enquanto são crianças. Vamos perguntar o que mais gostam na escola, em vez de querer quantificar conhecimentos. Vamos deixar correr as pernas em vez do tempo. Vamos perguntar a todas as pessoas, de todas as idades, e de forma correta, “O que queres ser quando fores grande?”.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico

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Comments 2
  1. Muito bom.
    Um bom tema, com uma exposição clara, lúcida e muito actual. Um bom alerta para a sociedade de hoje.

    1. Ponto de partida com uma das questões que exigem a pararmos. Pararmos enquanto pessoas, pararmos enquanto grupos sociais, laboriosos, sim, mas também pais, mães, avós, tios, tias, amigos/as com tempo sem tempo. Parabéns pela temática tão pertinente, exposta de forma clara, simples, generosa.
      Muito Bom!

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