Ao acompanhar o trabalho e o dia a dia de algumas pessoas através das redes sociais, foi sem surpresa que percebi que muitas delas tinham um objectivo comum para 2022: ler mais literatura escrita por mulheres. Também eu, no ano passado, fiz esta promessa (embora tenha acabado por não a cumprir).
Quantos livros assinados por mulheres encontra nos tops das livrarias? Quantos prémios foram atribuídos a livros escritos por mulheres? Um estudo feito na Austrália revelou aquilo que já sabíamos: os homens têm maior probabilidade de ver os seus trabalhos publicados do que as mulheres. Outros estudos demonstraram que os autores masculinos têm maior probabilidade de ganhar prémios com as suas obras e até de ver incluídos os seus livros nos programas educativos. Resumindo: os homens são considerados mais relevantes de um ponto de vista cultural.
A literatura como ferramenta do preconceito.
Recentemente, o surgimento, em Portugal, de uma editora que se assume publicamente feminista (e que visa publicar apenas livros escritos por mulheres) provocou desconforto. Mas afinal, haverá necessidade de excluir o público masculino?
Para responder, precisamos de olhar para o passado e ver como este influenciou (e ainda influencia) a literatura. Durante séculos, foi negado às mulheres qualquer nível de escolaridade. Mesmo com o aumento da alfabetização feminina, esta tinha um fim específico: ensinar as mulheres a ser boas esposas, boas mães, boas donas de casa. As disciplinas das ciências e do pensamento, como a filosofia, estavam vedadas a (quase) todas as mulheres.
A escrita tornou-se mais uma ferramenta de distinção: os pobres dos ricos, as mulheres dos homens. Só mais tarde, no final do século XV, é que a literatura se tornou um pouco menos exclusiva com a disseminação da literatura de cordel. O que hoje é uma expressão que vulgarmente usamos para catalogar aquilo que é considerado “literatura leve”, começou como uma forma de democratização da literatura: folhetins escritos sobre os mais variados temas (cultura popular, crítica social, dramas domésticos, entre outros), acessíveis ao povo e pendurados para venda em cordéis.
As escritoras, escondidas atrás dos pseudónimos
Mesmo depois de ter acesso à literatura, as mulheres continuaram a ver-lhes negado o privilégio da escrita. Para verem publicados os seus livros, as mulheres tinham de recorrer a pseudónimos. São vários os exemplos:
- Amantine Dupin, que assinava como George Sand.
- Mary Ann Evans, que assinava como George Eliot.
- Nelle Harper Lee, que decidiu assinar com o segundo nome porque soava mais masculino.
- Violet Page, que assinava como Vernon Lee.
- As irmãs Charlotte, Emily e Anne Brontë, que assinaram todas sob pseudónimos masculinos.
A lista podia continuar. Mesmo nos dias que correm, em simultâneo com as vozes da igualdade e do feminismo, continuamos a ter exemplos de escritoras que são aconselhadas a esconder a sua identidade: é o caso de J. K. Rowling (a quem a editora pediu para omitir o nome Joanne para não afastar o público masculino) e das escritoras Christina Lynch e Meg Howrey, que assinaram sob o nome Marcus Flyte, exatamente pelo mesmo motivo.
O desafio de ler mais escritoras
O objetivo, quando se decide ler apenas autoras ou editar apenas livros escritos por mulheres, não é discriminar, afastar, minimizar a literatura escrita no masculino. Trata-se de ajudar a dar voz ao talento feminino.
No final, quem gosta de ler, acabará sempre por estabelecer uma relação com os livros, independentemente de estes serem escritos por homens ou por mulheres. Mas, ao termos a noção de que a nossa tendência para ler mais autores do que autoras não é apenas fruto do acaso, podemos, conscientemente, expor-nos a perspectivas diferentes e libertarmo-nos do viés de valor a que somos submetidos.
Tal como disse no início deste artigo, ler mais obras assinadas por mulheres foi um exercício a que me propus no ano passado e que, infelizmente, não cumpri. O estímulo externo foi mais forte e há sempre mais um livro a sair (assinado por um homem), aquele livro que temos mesmo de ler (assinado por um homem), aquela obra que vai ser transformada em filme (assinada por um homem). O palco literário ainda é assumidamente masculino.
Por isso, na minha opinião, é importante ter no mercado editorial português quem levante a voz para nos lembrar que as mulheres também escrevem bons livros. Quem faça um esforço para nos fazer chegar obras que, de outra forma, nunca seriam traduzidas para a nossa língua.
Começo 2022 com a certeza de que, este ano, vou escolher as minhas leituras de forma mais consciente. Para já, estou a terminar um livro fabuloso da Elizabeth Strout e já tenho na calha um da Dulce Maria Cardoso.
Para terminar, faço-lhe um convite: junte-se a mim neste desafio. Experimente olhar para a sua estante e contar os livros escritos por homens e os livros escritos por mulheres. Depois, passe numa livraria ou numa biblioteca e traga um destes exemplares:
- Os Armários da Noite, de Alice Vieira.
- A Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge.
- O Bairro das Cruzes, de Susana Amaro Velho.
- A Vida Oculta das Coisas, de Cláudia Cruz Santos.
- A Filha do Barão, de Célia Correia Loureiro.
Vai ver que não se vai arrepender.