A galinha da vizinha um dia há de ser minha

Quando tinha quatro anos de idade passava as tardes na casa da minha avó paterna, que vivia no centro da cidade, rés-do-chão, zona urbana com prédios em sequência. Na parte de trás dos prédios existia uma área térrea onde os vizinhos de todo o aglomerado socializavam. Estávamos nos anos 90, na altura ainda se convivia e se trocavam ideias. Cada rés-do-chão era habitado por outros avós que também cuidavam dos netos e, por consequência, os netos brincavam uns com os outros. Era tempo de ser criança, de jogar à macaca, ao my god, andar de carrinho de rolamentos ou com pedais, de triciclo, bicicleta, construir Legos ou Playmobil, brincar com soldadinhos miniatura, enfim, tudo a que a imaginação imberbe e inocente nos levasse. Este tipo de experiências levava-nos à auto-descoberta e à construção da nossa personalidade. É verdade que cada indivíduo é uma espécie de cocktail: a nossa identidade forma-se através da identificação com os outros. Somos a soma das interacções com o meio e vamos absorvendo os ensinamentos e algumas características das pessoas com quem travamos amizade. Ao observar os outros, percebemo-nos e descobrimo-nos.

Nesse tempo, houve um episódio que me marcou especialmente numa tarde de convivência. Eu era ligeiramente mais velho do que uma das crianças e ainda não conseguia dizer os R’s. ”Rato” passava a ”lato”, ”garrafa”-”galafa”, etc. Nessa tarde, estava a brincar com esta criança e às tantas ela expressa a palavra ”carro” de forma cabal, para deleite da minha avó, que posteriormente elogiou o rapaz. Nesse momento, instalou-se em mim uma espécie de inveja/irritação que se alastrava pelo corpo todo, uma sensação de sangue a ferver. Num infinitésimo, puxei dos galões (acho que foi o mais perto que estive de me transformar em Super-Sayan do Dragon Ball, um anime aclamado da época) e comecei a vencer essa minha dificuldade. Enrolei a língua e das cordas vocais saiu o som ”arr,arr”. Numa questão de minutos já conseguia expressar o som almejado. A auto-superação consolidou-se e consegui dizer a palavra ”carro”.

Foi a primeira vez que me lembro de sentir algo similar a inveja. Este sentimento de inferioridade em relação ao outro (e sem justificação racional, pois a vida não deve ser vista como uma competição) fez com que conseguisse transcender a minha dificuldade com base neste sentimento. Apesar de estar presente em certas fases das nossas vidas, é um dos sentimentos que mais tentamos esconder. Ninguém sente inveja e todos somos alvos dela!

No fundo, a inveja assume um carácter polarizado, acompanhando o mundo actual, onde há falta de ambiguidade. Por um lado, pode ser o catalisador que nos faz agir em direcção à nossa vontade. Espelhamos a nossa ambição através do sucesso, muitas vezes aparente, das pessoas que nos rodeiam ou com que outrora lidámos, das que nos inspiram ou das que observamos nas redes sociais: somos bombardeados na internet por pessoas que fingem felicidade para agradar ao mundo, baseando-se em distorções da sua própria realidade. Este onirismo em espelhar a dolce vita do outro pode facilmente transportar-nos para um terreno pantanoso e algo disperso. Segundo Aristóteles, sentimos inveja sobre aqueles que achamos serem parecidos connosco e que ao longo da vida conseguem ter mais, colocando-se em vantagem em relação a nós. Assim, existe uma sensação de que fomos ultrapassados, e corre-se o risco de canalizarmos as nossas energias para o objecto invejado, não dando azo à produção da nossa própria felicidade. Queremos que os outros estejam bem, mas nunca melhor do que nós.

Muita das vezes, a inveja é uma forma de não reconhecermos a nossa impotência. Aniquila-se assim o processo de auto-crítica: esta deveria ser feita com a maior tranquilidade possível. Só assim se pode melhorar nas vertentes que desejamos. Só assim vencemos o nosso verdadeiro inimigo- nós próprios. A comparação com os outros não deverá estimular sentimentos de raiva, pois o sucesso alheio em nada altera a nossa existência e o nosso rumo.

O Ser Humano tem esta propriedade de nunca estar satisfeito com o que tem. Quer progredir na escada da vida e não aceita quando se depara com os seus limites . Esta busca incessante pela abundância traz-nos consequências nefastas para a nossa índole. ”Estar de bem com o mundo” é estar bem connosco, e o mundo requer que haja mais temperança no nosso âmago.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Antigo Acordo Ortográfico

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