Silêncio.
Só o vento no cabelo e na pele. Só o vento a contar segredos às folhas num sussurro descontinuado, num resfolegar suave mas urgente. Só o vento, quente e escasso.
Silêncio de novo, morto e sem sentido, como são os silêncios trágicos.
Percebo que estou abandonada no meio de memórias. Memórias que eram nossas mas que a partir de agora serão só minhas, unicamente minhas, nunca as vou poder passar a ninguém. Ninguém as entenderia. Estou perdida neste labirinto do que fomos, agora que só através delas consigo esticar o braço para chegar até ti.
Olho-te de longe. O silêncio é mais pesado que o calor daquela tarde de setembro. O silêncio não me deixa respirar. O calor não me deixa respirar. Tu estás estático. O vento não é forte o suficiente para mexer o teu corpo.
O teu corpo pendurado naquela árvore.
Não quero esta memória, só quero as outras. Quero chegar a ti quando sorrias e quando choravas e quando gritavas e quando corrias. Quando estavas vivo, independentemente da dor, apesar da dor, sobretudo na dor.
A árvore está torta, sempre esteve torta, é o que me dizem as recordações. Não a recordo de outra forma. É uma árvore velha e corcunda, mas confiável, resistente, imortal. A árvore do enforcado, chamam agora. Por ti. Baptizaste esta árvore depois de centenas de anos de não ter nome.
No entanto, é a tua sombra a levitar que mais me assombra. É aquilo que não quero que mais me abraça. A tua voz vai-se aos poucos, ficam apenas algumas palavras que te pertenciam e que as escutarei sempre no teu tom; a tua cara foi desaparecendo, já não tenho certezas dos teus olhos, do teu sorriso, da tua expressão; o teu toque já o invento. Tenho de encaixar constantemente com as peças pequeninas que a minha alma me vai permitindo, procurando em caixas fundas completar a tua imagem, tudo aquilo que eras para mim. A única peça que não quero, que quero perder, que já deitei fora tantas vezes mas encontra sempre o caminho para os meus sonhos, é esse dia. É a tua sombra a levitar. É assim o tempo, maldoso nas suas escolhas.
Não estás a dormir. O teu corpo é o corpo anti-natural de um boneco macabro. A morte não obedece a nenhuma lei além da gravidade.
Não há vento. Há um calor pesado e um silêncio pesado que me dão voltas à cabeça, que me fazem pensar em alucinações.
Olho-te de longe sem querer ver. Não entendi, nesse momento, que tinha acabado de me tornar filha única, sem nunca o ser realmente. Não tenho irmãos, mas não sou filha única. Não fui e continuo a não ser. Não é a tua morte que apaga a tua existência. Naquele momento, os meus olhos não souberam compreender, não sabiam como, não queriam. Queriam ser cegos e não ver. Mas vi. E corri o mais rápido possível para casa.