Nem toques, nem sala de aula

Lembro-me agora do meu percurso escolar e académico. Lembro-me de alguns professores que fui encontrando pelo caminho; outros não me lembro. De uns, sei o nome, a cara, visualizo com facilidade a sua figura quando recorro à memória. Outros não, são vagas lembranças de um lugar que devia ter estado ocupado. Porque me lembro? Não foi certamente o conteúdo que transmitiram ou a disciplina que leccionavam, foi, na coloquial expressão que reconhecemos, a sua maneira de ser. Eles, os professores, não deixaram a sua marca pelo que ensinaram, mas pelo que vestiam, como falavam, o que viam, o que esqueciam, como reagiam às provocações, como nos soltavam as rédeas nas visitas de estudo… ah! Imagino as saudades que os miúdos têm de se enfiar num autocarro, aos cinquenta ou sessenta, se possível a comer aquela sandes lá dentro, mais ainda se for proibido fazê-lo, a ouvir aquela música, num volume desaconselhado, como se o trajecto fosse a parte mais imprescindível da visita. Esses momentos ficam gravados na memória, mais que o Mosteiro da Batalha ou as grutas de Mira d’Aire.

Deixei-me envolver pelas memórias. Perdão. Voltando ao tema interrompido: os professores são exemplos. Bons e maus exemplos. São referências que podemos transportar para o resto da vida. Eu tive um professor de Filosofia que me marcou de forma perene. Ainda me questiono se, caso não tivesse acontecido cruzar-me com ele, teria vindo a estudar Filosofia, como depois veio a acontecer. Eu, com a minha natureza pensativa e questionadora, procurei método académico e encontrei ainda mais referências comuns com o meu professor, mas tenho colegas, a quem a Filosofia pouco ou nada deslumbrou, que se lembram dele. A história não fica completa se não disser que morreu e vários de nós estivemos no seu velório, quase vinte anos depois de termos deixado o liceu. Era uma pessoa especial, um ser humano agregador. Contudo, há mais, há outros: uma professora de português de quem me lembro sempre acompanhada da presença de Sophia. Tinha uma delicadeza de movimentos e um perfil que acendia imediatamente a nossa reminiscência da poeta. Um professor de métodos quantitativos que personificava o general; um director de turma, professor de inglês, cujos sumários se repetiam sucessivamente como ‘assuntos de direcção de turma’, um contínuo mal encarado, de quem tínhamos medo, o Lopes, enfim, fosse a vossa paciência inesgotável e eu continuaria…

Penso que estas imagens se fixaram porque houve longos períodos de convívio, de observação, de interpretação de comportamentos que, à altura pouco conscientes, estávamos a registar. Até há pouco tempo, um professor podia tornar-se um modelo. Será que uma cara num écran, com todas as condicionantes que o ensino à distância traz, também pode?

É certo que esta adaptação forçada ao ensino virtual pode incrementar as habilidades tecnológicas dos professores (que remédio!) e as capacidades de gestão no meio digital dos próprios alunos, entre muitas outras vantagens que se reportam a competências técnicas e que os entendidos na matéria saberão enumerar.

E o contacto com o outro? A presença? Vamos assistir a um progresso no domínio das competências digitais e a um retrocesso já tão anunciado das competências humanas e emocionais. Não questiono o acesso ao conteúdo, mas estarão a aprender?

Importa referir que no meio de todas as desigualdades (é já sabido que não estamos todos no mesmo barco, ainda que a tempestade possa ser a mesma), a escola – pública, entenda-se – acaba por ser um baluarte democrático. Vindos de contextos tão díspares, com condições tão diversas, os alunos encontram na escola um lugar de nivelamento. A mesma sala, condições idênticas para todos. Nalguns casos, encontram também protecção do mundo exterior. Nem todas as casas são refúgio. Há lares que podem ser pequenos, ou maiores, infernos. Que se saiba, a violência doméstica não sucumbe à pandemia, o alcoolismo, calculamos, também não. A questão social é gritante.

Não será preciso dizer que não é o mesmo ter aulas online numa sala arejada e luminosa, num ambiente tranquilo, sem fome, bem dormido, com computador e boa cobertura de rede, que numa sala lúgubre, com três ou quatro irmãos, uma mãe doente, sem computador… as histórias repetem-se. Não é igual. E sim, há aqui um estereótipo porque a realidade continua a sustentá-lo. Os métodos de adaptação ao novo ensino podem ser encontrados, mas desigualdades vão ser agudizadas. Há problemas de concentração, de motivação, de organização, de pais em teletrabalho a serem desmembrados por dois e três filhos em telescola. E são esgotantes se somados às preocupações sanitárias e económicas que nos povoam a mente, mas, do mesmo modo que a obesidade é um problema dos estados desenvolvidos e industrializados, o esgotamento descrito acontece quando estão reunidas as condições necessárias. Onde não há excesso de comida, a obesidade não é questão. Ou seja, há um substracto onde os problemas acima descritos não vão ser tema, visto que têm outros mais primários para resolver. E a Educação podia e devia ser motor de emancipação. O Estado, as organizações, as associações, privados, ajudam, mas a solução é mais demorada que a vacina.

E a vida? O que estes miúdos estão a perder? Uma nova normalidade? Quem quer isso? As histórias atrás dos pavilhões da escola? Os primeiros beijos? As faltas às aulas de Educação Física? Os intervalos, as associações de estudantes, as festas de fim do período, as festas de gala… é que a vida está toda na adolescência. Há casos de vida ou morte quase diários. Queremos tudo e muito, não vá o mundo acabar. Tantas vezes se acabou para alguém que não pode ir àquela festa de aniversário… Aquela intensidade com que se engole a vida pode bem estar balizada e com termo à vista pela idade. Se se interromper esta intensidade pode-se reencontrá-la mais tarde?

Muito do que crescemos advém do contacto com o outro, formamo-nos em interacção com a alteridade. A própria noção de cidadania faz-se em espaço público, a nossa personalidade afirma-se na troca constante com o outro. No ensino à distância, o Outro é esbatido a uma ínfima escala, perigosa, onde todas as individualidades se encaixam num quadradinho uniformizado pela distância.

Ficar com um ano (sabemos lá) suspenso aos trinta, quarenta, sessenta anos é maçador, angustiante, esgotante, mas e aos cinco, aos dez, aos catorze, aos dezoito anos? A vida ficou com um buraco justamente na adolescência, a idade dos sonhos. E só se tem quinze anos um ano da nossa vida.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do antigo Acordo Ortográfico.
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