Viagens

Os transportes públicos são escolas à disposição de todos. Além de terem horários, que devem ser cumpridos, funcionam como se fossem turmas pois os passageiros costumam ser os mesmos. Há vidas que se cruzam e azáfamas que se partilham. O destino pode ser diferente, mas o meio é sempre o mesmo.

A rotina, aquilo a que todos pretendem fugir, vence nesta luta desigual. Chegar a horas certas a um determinado local implica uma ginástica bem musculada que nem sempre é possível fazer. Por fim cria-se uma ligação entre ” os colegas de carreira ” e a intimidade ganha terreno.

Aos poucos vamos sabendo da vida de cada um, dos seus múltiplos afazeres e das contendas que têm de suportar. Há sempre um telefone que toca e acaba por se entrar nas relações de quem solta a voz. Mesmo sem saber o que diz a pessoa que está do outro lado, facilmente se deduz o que possa ser.

Os passageiros também têm tipos, que esse enquadramento serve para tudo. Há os que se sentam sempre no mesmo lugar, os que gostam de ficar em pé, os que espreitam para ver se alguém conhecido está no fundo e os que gostam de meter conversa com todos. Estes usam o seu melhor tom e deixam ficar um rasto de luz.

De manhã o sono costuma imperar, mas ao fim do dia é a pressa que toma o seu lugar. As pessoas desdobram-se em tantas e as mães vão buscar os filhos que, de manhã, ficaram nas amas. Outras saem apressadas e entram nas escolas e outras ainda vão às compras. Claro que também há pais com filhos, mas são em menor quantidade.

Se um dia algumas destas personagens falha, a história fica mal contada. Sem se querer criam-se ligações e mesmo guardando as distâncias, a preocupação assola com a maior das facilidades. Que terá acontecido? A rede começa a ficar apertada e acolhe todos os que nela pousam.

Um destes dias uma senhora falava tão alto que se ouvia em toda a carruagem. Entre variados e muito cómicos disparates, as gargalhadas soltavam-se. Era cedo e este bálsamo matinal serviu para limpar os neurónios e fazer acordar. Entre queixas sem sentido e outro tipo de irazinha, com voz zangada dizia: ” Olha que ele é parvo. Eu que sou deslumbrante devia estar na entrada e assim os clientes ficavam logo aviados. “

Vislumbrando a senhora em questão podia estar em desacordo com a sua avaliação, mas a beleza está nos olhos de quem vê. E a humildade é roupa que fica apertada a muitos. Quanto aos aviados, remeto para o campo de relativo. Talvez seja uma nova técnica de marketing que desconheço. Admito que tudo é possível.

E a conversa continuou com detalhes que se dispensam, mas que ela, cheia de raiva pela injustiça cometida, fazia questão de libertar. O que não esqueci e que deve ter deixado alguns passageiros menos confortáveis foi quando, em tom meloso, afirmou: “Olha que a dele é a melhor de todas! Grossa e curta, mas boa! Uma delícia!” Obviamente que poderia ser uma caneta, mas cada um pensa o que quer.

Terminada a ligação começou a cantar. Que mais se pode desejar? A seguir à total e completa indignação veio logo a alegria e satisfação. O poder de apagar as tristezas é maravilhoso e os risos continuaram a ser o ambiente daquele espaço. Ao meu lado o senhor fazia o típico gesto de falta de juízo.

São estes episódios que dão cor aos dias cinzentos e animam as manhãs que teimam em não querer brilhar. Fiquei com a senhora na ideia e imaginei-lhe uma vida que não é dela mas sim minha. Coloco-a num local de trabalho e vejo as várias peripécias que lhe podem suceder.

Os regressos são sempre mais toscos. O cansaço apodera-se de todos e o fim do dia, como dizia o poeta, inspira-me. A noite é sempre boa conselheira e as estrelas, essas terríveis luzes inquietantes, são as melhores testemunhas de pensamentos bem simples e conciliadores.

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