Azevedo Silva, um “Fadista Indie”

Idiota. Gonçalo. Luís. HAL 9000 (de 2001: Odisseia no Espaço). Ou Sr. Fado Indie. Poderá ser conhecido por muitos nomes, mas é por Azevedo Silva que conquistou o seu lugar nos palcos da música portuguesa. Em todas as suas músicas, traz um reflexo do seu mundo e das histórias que o rodeiam, instigando o pensamento e colocando em causa as certezas que muitos têm. O seu mérito reside particularmente na capacidade de imediatamente cativar o mais negligente ouvinte português, quer pelos acordes da guitarra, a lembrar o saudoso Zeca Afonso, quer pelas elementares letras, palavras austeras e realistas, que soam como pungentes acoites na consciência de cada um de nós. Depois do EP “Clarabóia” (2006), dos álbuns “Tartaruga” (2007), “Autista”(2008), “Ao vivo na Sociedade” (2009), “Carrossel” (2010) e “Monja Mihara” (2012), Azevedo Silva volta com um novo corpo de originais, com “V”. Estivemos à conversa com ele e descobrimos o que o motiva como cantor e o que esteve por detrás desta nova aventura musical.

O novo álbum, “V”, cuja apresentação foi feita a 14 de Novembro de 2014, pode ser descrito como um álbum repleto “de uma portugalidade natural e flagrante, com letras ousadas e actuais, que têm fortes doses de realidade, intervenção e observação. Melancólico, mas dançante.” Tal como o website Palco Principal tão bem o descreve. Conta-nos mais das histórias que compõem este álbum.

Curiosamente acho que é o disco que reflecte menos essa melancolia que está tão presente nas minhas canções. Enfim, continua a ter a minha marca mas tem ambientes mais variados. Nem todos os discos que faço obedecem a um conceito e creio que este foi o mais espontâneo em termos de composição. Se no “Monja”, ou no “Carrossel” havia um relato da minha observação quotidiana, neste disco os temas são claramente sobre mim. Ando a pensar muito nisto. Não sei ainda explicar-me de uma maneira coerente. A verdade é que existe o Azevedo Silva, mas também o Luís para os amigos e o Gonçalo para os colegas de trabalho e família. Tenho dificuldades em perceber porque é que o Azevedo é tão introspectivo, já que o Luís é um rapaz brincalhão, hiperactivo e social. O Gonçalo é um gajo super organizado, pouco relaxado, eficiente. É tipo o HAL 9000 do Kubrick. A característica comum a estes três personagens é que são sóbrios e, portanto, a memória funciona, a vida pesa e a realidade é bruta. Não há como voltar atrás. Cada passo tem uma consequência. Tudo isto para dizer que acho que este disco mistura histórias da adolescência do Gonçalo (más experiências na escola, separação de alguns amigos, começar a trabalhar depois de desistir da faculdade, os X-Files), com as incertezas artísticas do Azevedo Silva (os passos em falso, a ideia do insucesso, o não ser músico profissional) e a vida mais social do Luís (que aproveita a vida com um sorriso e se diverte com muito pouco). O Azevedo Silva é aquele tipo sempre à beira de desistir da sua arte, porque o Gonçalo é o vencido pela vida e pela rotina que só vai sobrevivendo graças ao Luís que é um tipo que, no fundo, gosta de pessoas, viagens, desporto, jogos de futebol da distrital de Lisboa e açúcar.

Na linha de continuidade que são os teus álbuns. Fala-nos deste último…

Tento sempre uma fuga ao disco anterior, mantendo aquela que é a minha identidade enquanto artista. Para mim não faz sentido seguir artistas que repetem a mesma fórmula ao longo de uma carreira. Na verdade, acho até um pouco ofensivo, quando julgam que isso é uma carreira. A tarefa é de criação e não de cópia, ou repetição. Portanto, neste novo disco decidimos explorar ambientes mais ligados aos teclados e à electrónica. Espero que para o ouvinte isso seja suficientemente claro. Pelas reacções que temos recebido, creio que foi. É certo que a componente computacional já estava presente desde o início, mas creio que estamos a começar a levá-la até outro patamar. O método de composição foi muito livre e beneficiámos muito de ter um estúdio próprio. Acho que tem de haver um certo transe para se chegar a algo fora da nossa zona de conforto. Este disco teve vários momentos criativos que só resultaram em algo melódico, porque insistimos nesse transe, quando já só para nós fazia sentido o que estávamos a produzir. Acho que sem isso nunca teria lançado a “iPop”, ou a “Idiotas”. E quando falo de nós, estou a referir-me ao Filipe Magalhães, que me acompanhou no processo todo, o Fernando Matias, que produziu as músicas em estúdio, algumas dicas do Grácio e até mesmo a pré-produção fundamental do Nuno Silva.

Porquê “Idiotas” para nome deste novo single?

A resposta mais simples e óbvia é que o Mundo está cheio deles. Somos quase todos uns idiotas e não temos noção disso. Essa questão é tão básica que nós raramente nos apercebemos da inexistência de autocrítica, mas temos os filtros bem activos para criticar o próximo. Nós somos a espécie que está em perigo de extinção por culpa própria e que nem sequer considera isso uma ameaça real. Quer dizer, o armamento nuclear norte-americano está obsoleto e mal vigiado. Deve ser preciso 2, ou 3% desse armamento para acabar com a humanidade. Já para não falar na sabotagem ambiental. No entanto, a verdade é que o tema é baseado naquele paradoxo de que, por sermos tão burros, idiotas e ignorantes, perpetuamos os nossos actos estúpidos. A linguagem é propositadamente agressiva. Eu sei que não sou ninguém – e o meu objectivo não é apontar dedos indiscriminadamente – mas é muito óbvio que somos uma raça que podia conviver mais harmoniosamente neste planeta, o único que sabemos que funciona para nós. No fundo, há um bando de idiotas, que, por ter tanta confiança na sua estupidez, nunca a entende. Nem sequer vou querer particularizar num exemplo, porque é fácil chegar a vários. Os outros, os que percebem que algo vai mal, já se resignaram a essa existência e não têm nem vontade de protestar, ou reagir. Espero que tudo isso mude, mas, dado o curso da História, creio que as mudanças de costumes são demasiado lentas a produzir efeitos numa sociedade. Enfim, sabes como são os idiotas: nunca têm dúvidas e raramente se enganam.

A determinado momento deste primeiro single, cantas o seguinte verso: “É que este Mundo tem tanto idiota e tanta gente já nem se importa.” Quem são os “Idiotas” a que te referes?

Como disse, não sei se quero particularizar. Eu tenho uma certa autocrítica que me ajuda a perceber que não estou imune ao próprio verso que cantei. Nem me levo assim tão a sério para sentir que sou superior a alguém. Acho que esse é o problema do idiota. É julgar-se o melhor, o bom, o sabichão, o espertalhão (uma personagem deplorável e de inteligência de sarjeta). Já fiz coisas estúpidas, para as quais olhei e sobre as quais reflecti. Obviamente a reacção foi rir-me da minha própria idiotice. Como por exemplo, adormecer ao volante a regressar de concertos. Isso é idiota, mas não é só nesses aspectos mundanos que me quero focar. Nós não quisemos tocar nesse assunto no vídeo deste single, porque podia cair no mau gosto e eu não queria criar estereótipos. Tenho amigos anticapitalistas que usam o Facebook e colegas que gostam de tourada, ou são pró-vida (o que quer que isso seja – porque a malta pró-vida normalmente é pró-guerra, ou gosta de leis para controlar a imigração “dos outros”). Temos discussões sobre isso, mas o assunto morre aí e eu não tenho vontade de desejar-lhes um fim trágico. A minha educação diz-me que os corruptos, os homofóbicos, os intolerantes, os agressores, ou os opressores, são todos idiotas. Onde quer que haja opressão, miséria, enriquecimento ilícito, violência, redistribuição injusta dos capitais, ou violação dos direitos humanos, há idiotas. Infelizmente a resposta é: isso há em todo o lado, em muitos de nós.

Neste mesmo single, respondes que o teu plano é mostrares quem tu és. Quem é o Azevedo Silva?

Na verdade, a ideia é que eu estou a fazer essa interacção com o idiota. Idiota esse que quer mostrar ao Mundo quão bom ele é. Gosta da fama, é vaidoso, tem orgulho na sua mediocridade. Mas como disse anteriormente, não tenho o Azevedo Silva em grande consideração, no sentido em que não está acima de críticas, ou de alguém. O Azevedo Silva é um humano e, portanto, tem os seus defeitos, as suas virtudes, as suas incompetências e insuficiências. Assim, já pareço os jogadores de futebol numa flash interview a falar na terceira pessoa! Sobretudo, é um tipo inconformado e insatisfeito, mas que ainda não se deixou vencer por alguns contratempos que aparecem.

As tuas canções fazem-nos submergir num mundo novo e muitas vezes sombrio. É uma maneira de nos confrontar com a realidade?

A ideia de que é um mundo novo não a tenho, mas só é sombrio para quem não percebe o Mundo, ou a História. A mim não me irrita, nem me incomoda que as pessoas sejam felizes. Era o que me faltava, se eu me preocupasse com essa situação. Aliás, já te disse que me divirto com muito pouco. Adoro que as pessoas sejam felizes e bem-dispostas, sobretudo, quando têm sentido de humor. Outra coisa é uma pessoa ser voluntariamente ignorante e desinteressada. Isso já não compreendo. A vida tem esses dois lados, essas dicotomias: bom e mau, céu e inferno, triste e alegre. Se existe uma, também existe a outra. O mais fácil é negar a existência do Inferno, mas acreditar no Céu. É mais confortável. Para mim, felizmente, nunca experienciei nada traumático, algo que deixasse cicatrizes profundas. No entanto, como disse ainda agora, há tanta injustiça a acontecer no Mundo, que me choca esta condição humana de se preocupar apenas com o seu umbigo e depois dizer que existem “os outros”. Os outros são maus, são terroristas, vivem de subsídios, são pobres e bandidos, são “de fora”, vêm roubar os nossos postos de trabalho, são pouco educados, etc. Eu nunca gostei de filmes de fantasia. Se calhar gostei do Indiana Jones. Mas o que queria dizer era que nunca liguei muito a contos de fadas, ou finais felizes. Sempre fui um rapaz de factos e documentários. Um tipo, por vezes, frio. Se calhar por isso, é que adoro humor britânico, ou do Bill Hicks. Acho que há uma parte da população mundial que tem a sorte de viver numa bolha, isolados da realidade que os rodeia. Aquilo que eu canto parte da minha observação e eu não me posso dissociar das minhas experiências. Claro que isso cria um clima pesado, por vezes, mas eu não tenho medo da realidade, nem pretendo fingir que ela é algo diferente.

Tens alguma rotina para compor? O que te inspira nas tuas letras, especialmente para este novo trabalho?

Acho que nunca tive rotinas para compor, apesar de não acreditar que as músicas estão no ar e nós temos uma espécie de inspiração divina. Não concordo nada com isso. A minha música vem do trabalho, do estúdio, da experimentação, da perserverança. Infelizmente para quem deseja ser criativo, o meu dia está tripartido entre trabalho, descanso e o que sobra para fazer tudo o resto. Isso não dá para ter uma grande rotina. É quando há tempo. O que já sugeri a outros músicos é que gravem todas as ideias que têm e as vão melhorando. Acho que isso é fundamental. Para este disco, há um tema do Danny Brown (rapper americano) chamado “30”. Se o percebi bem, entre muita porcaria que por vezes diz, ele aborda a ideia de que chegou aos 30 anos e ainda não cumpriu tudo o que esperava e que isso é uma fonte de stress. No fundo, ele sempre soube o que queria da sua vida, mas nem sempre é fácil atingir o que se quer. Acho que tudo começou por aí. Disco após disco, eu vou continuar a insistir no que faço, porque é o que me dá prazer. Como ele diz e é preciso dar desconto a um rapper, nunca aprendeu a fazer música, porque sempre soube como fazê-lo. De resto, desta vez inspirei-me na minha vida: pelo que passei pela partida dos amigos de um país que pouco lhes pode oferecer, ou pela história de vida da minha família.

Quanto tempo demorou a ficar gravado o disco?

A parte de gravar um disco não é a mais difícil. Fizemo-lo numa semana. A parte mais complicada é deixar o disco respirar, ouvi-lo cem vezes, produzi-lo, misturá-lo, fazer experiências, durante 10 horas, e chegar ao fim e perceber que ficou pior do que o que se tinha. O processo todo demorou uns 4 meses.

É carinhosamente conhecido por ter um estilo apelidado de “fado indie”. O que é para ti o “fado indie”?

Essa ideia veio do Brasil, quando lá fui com o Filipe Grácio para o Festival El Mapa de Todos, em Brasília. Para nós, foi uma surpresa, mas fácil de entender. Os temas são tristes, a voz é melancólica e o meu som da altura era, sobretudo, acústico. Para mim o fado indie foi só uma maneira de a imprensa brasileira me catalogar por ser português (e ser essa musicalidade que eles mais conhecem de nós) e ter aquela alma triste. Tem uma certa piada, porque eu sou péssimo a catalogar o que faço e, dessa maneira, os brasileiros ficaram curiosos com o meu concerto.

Neste teu percurso tão rico, de que forma é que os So.ma se encaixam na tua evolução e te complementam musicalmente?

Julgo que há uma questão emocional que me liga sempre aos So.ma, ao Rock, à distorção, aquelas pessoas que tocam comigo há mais de uma década e que se tornaram minhas amigas. Na altura em que aconteceu, o EP Fuga foi uma descarga mais agitada que nós queríamos fazer há muito tempo. Isso foi um óptimo pretexto para nos juntarmos novamente e para equilibrar as nossas forças, visto que na altura só nos estávamos a dedicar a projectos mais calmos. Para além de ter dado frutos artisticamente (demos vários concertos e estivemos no Optimus Alive), foi importante para voltar a estar com amigos e vê-los com mais regularidade. Não quero ser mais ternurento que isto.

Já deste concertos pela Europa e pela América do Sul, como tem sido a relação com o público até agora?

É verdade. Quer dizer, quando se fala da América do Sul, refiro apenas o El Mapa de Todos. Infelizmente, não é fácil fazer a viagem intercontinental e planear uma digressão pelo Brasil, ou pela Argentina. Não tenho contactos suficientes, nem poder financeiro. As reacções foram sempre muito entusiasmantes. Aliás, no Brasil sentimos mesmo que a nossa carreira não poderia subir mais. Foi fantástico. Se conseguir voltar a repetir o que por lá me aconteceu, então, serei um artista muito feliz. Curiosamente, nos outros pontos da Europa, a reacção não foi muito diferente. Pensei que a barreira linguística fosse um problema mais sério. É certo que não entendem a letra, mas eu também consigo vibrar com música africana, ou japonesa sem entender uma palavra do que dizem. No meu caso, expliquei os temas que abordava e as pessoas davam-me os parabéns por transmitir uma atmosfera muito particular à qual nunca tinham sido expostas.

Onde é que te poderemos ver e ouvir nos próximos tempos?

Ainda estou à espera de desenvolvimentos, porque iniciei um trabalho com a Music in my soul que ainda é muito recente. Estamos a ultimar novas datas, mas que ainda não quero confirmar. De resto, como também sou músico convidado noutra banda (When The Angels Breathe), a minha agenda não me permite grandes correrias como tinha no passado. Em princípio, se as negociações em curso correrem bem, temos novidades a partir de Janeiro.

No Repórter Sombra, gostamos de dizer que este é um espaço onde podemos dar voz à nossa visão do mundo. Para terminar esta entrevista, qual é a visão do mundo que o Azevedo Silva tem e partilha connosco nas suas músicas?

Nas minhas músicas, é uma visão que, não raras vezes, se identifica mais com as pessoas que, de alguma forma, sofreram. Acho que, como disse, o Azevedo Silva acaba por ser mais melancólico do que o Gonçalo, ou o Luís. Claro que não é sempre esse o meu estado de espírito. Desenganem-se os que pensam que, no meu dia-a-dia, é assim que me expresso. Da mesma maneira que um comediante não está sempre a rir, eu não costumo estar melancólico. Gostava de poder transmitir uma mensagem de esperança, mas há demasiadas situações erradas com a humanidade para que eu me consiga abstrair delas. Mesmo assim, os temas deste disco são mais leves que os anteriores.

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