Bom senso

É um murro no estômago, sem aviso prévio, assim que ouves: “O seu filho tem diabetes. É uma doença crónica.” Como assim crónico? Para o resto da vida?

Escrever ou falar da doença não chega, quando na realidade viver a doença é o grande desafio. Não é uma questão de ser o meu filho, ou até é, mas uma criança doente é uma coisa triste.

No hospital, a equipa foi incansável a tentar explicar ao máximo e a reconfortar tudo e todos, onde só aponto o dedo a uma pequena situação e não é nada pessoal, mas é uma questão de se ter a realidade na realidade. Parem de dizer que vai correr tudo bem, pois sabemos que não vai. Sabemos que irão haver dias péssimos, terríveis, mas que terão de ser ultrapassados. Percebo e compreendo que queiram transmitir confiança, boas vibes, mas há quem dê uma falsa esperança.

Pós-hospital? Consultas, medicamentos, etc. e tal… é tudo um espetáculo, quando vejo algumas coisas serem comparticipadas e outras não, bem como a escassez de alguns consumíveis nas farmácias. A parte da comparticipação eu até compreendo (ou não), no momento em que vejo fundos para A ou B serem aprovados ou concedidos, mas isso é uma guerra que não é minha. “Diabetes” é que é a minha batalha.

Não, não é só controlar os níveis, é controlar também o psicológico, a parte emocional, e tentar com todas as forças não dar um grito, quando até para comprar um simples bolo não te podem sequer pesar o dito cujo.

Dificuldades? Algumas. Senão vejamos: numa simples padaria, onde se pede a tabela nutricional de um produto, para garantir a quantidade de hidratos a consumir e acabam a olhar para ti de lado? “Não sei, mas vou tentar saber” é a resposta e passam dias, semanas, em que acabam por dizer que continuam sem saber.

Pessoalmente, quando ainda o meu filho estava internado, comprei uma balança, tendo já adquirido 4 num todo e distribuídas pela habitação principal, pela casa dos avós, pela creche e para o bolso. Bolso? Sim, comprei uma balança de precisão, quando na pastelaria pensaram que eu era todo do fitness, após pedir para ser pesado um simples bolo. Tive que explicar que o meu filho era doente, onde a cara de “coitadinho” aparece, mas coitadas são as pessoas que querem uma explicação, quando na realidade, assim que eu virar as costas, acabam por menosprezar a doença e as suas carências.

Em Portugal, dizem ou escrevem “Je suis Charlie” bem como acompanham o “Black Lives Matters”, quando “it doesn’t matter” o que o vizinho do lado tem.

Em pouco tempo de doença vivida, vejo uma mãe enviar para a festa de anos da sua filha um bolo, excessivamente grande e carregado de chocolate, quando a senhora sabia que o meu filho tem o que tem. Contudo, como não lhe é nada, assobiou para o lado de forma literal. E se eu disser que a pequena aniversariante perguntou se o coleguinha podia comer? Vejam bem quem daria o exemplo.

Não, não é o facto do meu filho ter diabetes que me leva a pensar nas suas refeições, pois antes já tinha cuidado para não se cair em exageros.

Ele pode comer de tudo um pouco, sim, até chocolate, mas para tudo há um peso, uma medida e uma qualidade. Deve também, obrigatoriamente, existir bom senso, pois é uma doença que nos ensina diariamente.

Tenho cinco meses de diagnostico e, para já, o meu dedo aponta de forma bem dura ao comportamento humano e à ausência de discernimento.

Vi, há pouco tempo, uma reportagem que dava a conhecer as dificuldades da Inês no seu regresso à escola, mas com diabetes a acompanhar. Na reportagem, foi dada a conhecer a recusa da escola em pesar os alimentos (só os hidratos) ou, em último caso, permitir que a Inês levasse a comida de casa já pesada e separada. Algo que foi aceite, mas teria de fazer as suas refeições em espaço que não a cantina. Regras que não podem ser quebradas, segundo a directora.

Não teria sido mais fácil e humano permitir que a Inês comesse as suas refeições na cantina e expor a situação ao Ministério da Educação? Portugal, um local que tem planos e fundos para dar seringas e ter salas de chuto, é incapaz de ter uma ressalva nestas situações?

De salientar ainda, a impulsividade de alguns encarregados, aquando do conhecimento de que uma criança tem a “facilidade” ou “autorização” para poder levar alimentos de casa para o estabelecimento em que está matriculado. Uns enviam também eles comida aos montes, pois, se uns podem, todos podem… mas e que tal perguntar por que razão acontece? O mais engraçado é que em pleno século XXI há quem desconheça o que é diabetes e, aí, há que explicar que não é uma doença contagiosa.

Como disse, muito precocemente a viver esta doença, mas para já aponto o dedo ao comportamento humano, devido à ausência de bom senso.

Uma criança doente é um mundo que desaba. Um Pai é alguém que sofre em silêncio, mas com uma dor maior.”

O Pai.

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