“As Invisíveis – Histórias Sobre o Trabalho de Limpeza”

Talvez seja apaziguamento de alma ou recalcamento antigo (ou até mesmo um certo paternalismo), mais do que o respeito ou a simples boa educação, o motivo pelo qual cumprimento diariamente as empregadas de limpeza com quem me cruzo nos dias em que entro no escritório, pouco depois das oito da manhã.

O piso encontra-se deserto àquela hora e o facto desta expressão – “deserto” – não ser beliscada perante tal mentira – não pode estar deserto um lugar onde se encontram senhoras, pessoas que limpam o lixo que diariamente produzimos – mostra como o desrespeito começa pelo descuido ou sobranceria da linguagem.

Conheci a Lucinda há anos, antes da pandemia, quando nos cruzávamos todas as madrugadas, durante os largos anos em que trabalhei no piso 7 da Torre C. Pelas muitas meias horas em coincidíamos só os dois num piso que, cheio, levava cerca de sessenta pessoas, foi-me contando as histórias do marido, do neto, dos filhos, mas também o esforço dos dois ou três empregos, do despertar madrugador e dos dramas com a responsável e com a chefia na empresa de limpeza onde trabalhava.

Assim, quando vi o livro da FFMS, As Invisíveis: Histórias Sobre o Trabalho de Limpeza, de Rita Pereira Carvalho, soube logo que o leria. Ainda que estes pequenos ensaios peçam sempre mais sumo para a minha sede, este testemunho veio de encontro ao que esperava e, uma vez mais, talvez tenha mais apaziguado algo em mim do que conferido respeito por tamanhas heroínas.

Estas (poucas) páginas reúnem uma colecção de histórias reais, duras e menosprezadas, de quem limpa os espaços por onde andamos sem que reconheçamos o esforço e abnegação destas mulheres (esmagadoramente), que por pouco dinheiro e muito sacrifício nos trazem um conforto que nos parece natural.

Um banho de realidade. É bom, útil, formativo, e até transformador, irmos entrando nestes relatos. Talvez inculque em alguns de nós a consciência de algo novo. Talvez entre a cem e saia a duzentos, talvez destape o lado soalheiro da sorte que temos e teimamos manter à sombra de um pretenso azar. Porque são vidas difíceis que aqui são contadas, que começam antes dos autocarros semi-desertos da capital começarem a circular quando, pelas cinco da manhã (semi-desertos não é o mesmo que desertos, talvez ao fim de algumas linhas e tanta mais reflexão eu tenha aprendido a corrigir o texto), deixam os filhos pequenos com amas (outras sacrificadas da vida) para poderem pegar ao trabalho antes de o sol nascer e assim não perderem o emprego que dá alimento aos pequenos.

Podemos sempre não dramatizar e olhar para estas vidas com optimismo, mas não deixamos de o fazer no conforto de um sofá de uma casa aquecida. Não que tenhamos que pedir desculpa pela sorte que temos quando a comparamos com a destas pessoas tão fortes, mas tomar de vez em quando um banho de realidade lava-nos a alma; talvez mais do que apaziguá-la, lavá-la com doses generosas de respeito e admiração seja o que este testemunho me ajuda a alcançar.

Os livros da FFMS e dos brilhantes e generosos autores que emprestam a sua arte e tempo a estas causas trazem-me isso: a consciência desta imensidão de sorte que me calhou, contribuindo para manter os pés assentes no chão desta realidade tão próxima de todos nós. Afinal, esse chão que pisamos é o mesmo que elas limpam. Este livro dá-lhes nomes. Eu conhecia um: Lucinda. Seria só mais um que poderia dar corpo a um capítulo deste livro.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Passar pela vida sem conhecer o amor

Next Post

Quanto mais envelheço, menos amigos tenho.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Ironias Religiosas

Desde muito cedo que a religião está ligada à sociedade. Foi e continua a ser motivo de guerras e comemorações,…

Ao Cair do Pano

Há dias em que não vem ninguém. Se chove, se é dia de semana, se é meio do mês, não vem ninguém. No quarto…

Luxúria salival

Notei que estás sozinha. Desculpa, não queria aparecer do nada, deixar-te sobressaltada…mas sabes, não…