O lugar dos fracassos

Tudo o resto são mentiras.

A sua vida recomeçava a cada morto. Pelo menos, convencera-se disso.

Invejava a leveza e o brilho dos mortos. Ostentavam serenidade, enquanto ele exibia o fardo do fiasco. Sentia-se mais morto do que qualquer morto, excepto quando estava na presença deles. A natureza sombria dos defuntos enchia-o de vida, renovava-lhe o espírito.

Todas as noites, o mesmo ritual, o mesmo percurso e a mesma ladainha: “Se a alma for deixada na escuridão, serão cometidos pecados. O culpado não é quem comete o pecado, mas sim quem provoca a escuridão” – a frase saída de Les Misérables que repetia até à exaustão durante o trajecto. Não se recordava de quando começara a falar alto sozinho, mas isso aliviava-lhe a inquietação. Nas mãos carregava a pá, na mochila, a esperança dos falhados. Saltava o muro, abria uma sepultura, contemplava o cadáver, segurava o crânio com as duas mãos e, antes de o voltar a fazer desaparecer por debaixo da areia, pedia desculpa. Sentia-se vivo a cada cova que abria, a cada profanação consumada. Agradava-lhe a decrepitude daquele lugar, um lugar onde só a morte sobrevive.

Terminado o culto, voltava para casa. Entrava sem fazer barulho, aconchegava o lençol no corpo do filho, deitava-se e adormecia com a mão a acariciar os cabelos compridos da mulher. O cheiro fétido da decomposição entranhado nas mãos a misturar-se com a fragrância fresca de maçã verde que emanava do cabelo dela. A vida e a morte, o sol e a lua, o dia e a noite. O frenesim a crepitar-lhe por dentro. O sucesso e o insucesso, o oposto e o seu contrário são uma linha fina e impossível de decifrar. A sua própria arqueologia fantasma escavando e reconstruindo todos os seus fracassos.

Nascera morto para a vida, encalhado nos seus becos – costumava dizer, a cada tentativa de a refazer. Crescera sem grandes cuidados. Esta foi a única desculpa que encontrou para explicar o que mais tarde sucedeu e que precipitou o fim das desilusões.

Por altura dos seus vinte e cinco anos, já a sua existência se resumia a uma sucessão de desastres. Fora alfarrabista durante três dias de uma aborrecida felicidade, segurança de museu um par de meses, vendedor de antiguidades pouco mais de uma semana. Tivera, entretanto, várias outras ocupações pouco dignas, as quais eu farei o favor de ocultar. Os casos sucediam-se sempre da mesma forma: saltava para o mercado de trabalho, abria-se uma oportunidade, contemplava a profissão, não a segurava com as duas mãos e, antes de a fazer desaparecer por entre os dedos, pedia desculpa. Fungava constantemente, era fanhoso e coxeava devido a um desnível na perna esquerda, factos que, na adolescência, lhe valeram o prestigiado papel de árvore na peça Romeu e Julieta, em exibição na escola secundária. A sua vida familiar baseava-se na relação com uma mulher de passado duvidoso e um miúdo que não tinha a certeza de ser seu.

Certa vez, quando a manhã já se começava a assemelhar a uma pintura de Monet, balançou entre dois desfechos possíveis: fugir do monstro ou aceitar o cruel destino? Qual seria um e qual seria outro? Fazia tempo que a voz na sua cabeça exigia um novo destino. A altura de renovar objectivos chegara.

Com o entusiasmo dos fracassados, esperou, paciente, que o dia se tornasse noite. Tapou o rapaz, já frio, e deitou-se. A mão fedorenta a acariciar o cabelo dela, outrora cheiroso. Decidira, enfim, dar-lhes o brilho e a serenidade dos mortos. E só então conseguiu respirar devidamente.

Certas coisas não têm qualquer sentido até passarem a ter todo o sentido.

Tudo o resto são mentiras.

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