Abel era ainda um catraio quando perdeu a sua sombra.
Despontava no céu uma quinta-feira turva quando ele amanheceu assim: um enigmático prodígio científico, uma potencial aberração circense. Nos intestinos do bairro, onde subsistem as histórias cochichadas, contava-se que Abel se mijou calças abaixo quando se apercebeu de que lhe faltava a projeção do corpo no chão. Invadiu-se de pânico com a ideia de estar morto, não queria ser aparição, inexistência figurada.
Ainda assim, ninguém quis saber. Nem mesmo a amargurada tia que lhe dava abrigo fez caso da situação, Para que queres tu uma sombra? Estilhaçada a novidade, foi-lhe dado o mesmo risível e pitoresco crédito de que gozavam o anão e a mulher barbuda da vizinhança.
Na altura, ainda muito miúda, senti que era a única interessada na malfadada história do Abel. Passava dias a vê-lo da janela, passeando solitário pelos seus mundos. Lá em baixo, no pátio, adiava a ida para casa enquanto fazia rodar a eternidade por entre os dedos, frágil. Já noite, sumia-se rua acima, pendurado sobre um corpo que parecia não ter solidez suficiente para quebrar a luz dos candeeiros.
Cedo abandonou a escola. Pouco lhe interessava saber se a Terra é o terceiro ou o quarto calhau a contar do Sol. Queria, isso sim, saber onde fica a porta de entrada do Universo, quando se inaugurou a contagem do tempo, quem fez da sombra um requisito à existência terrestre. Mas como para isso a ciência dos telescópios não chegava, não voltou.
Abandonou-se a uma existência insular até que desapareceu. Autoproclamado vagamundo, devorador de paisagens, foi viver para a floresta. Além de mim, talvez ninguém lhe tenha notado a ausência.
Abel regressou ao bairro uns anos depois. Desabituado de diálogo, vinha gago. Desabituado de comida, vinha magro. A sua silhueta débil, sem o agasalho de uma sombra que a acompanhasse, fazia-me lembrar um pinheiro despido atravessando o inverno. Quando passava, na sua eterna marcha a caminho de coisa nenhuma, as esquinas segredavam, Coitadito. Já eu, sempre lhe invejei a liberdade.
Nessa altura, a sua voz cantada, suja, passou a fazer parte do quotidiano do bairro. Passava horas de pulmão aberto, enchendo os becos de uma melodia perfumada de névoa. Por entre o fraseado desconexo, Abel regressava sempre a dois versos rugidos, como se desejasse injetá-los nas veias da cidade,
Durmo perto das nuvens mais altas
porque não fui eu que decidi o mundo.
Abandonei o bairro num outono quente. Atrás, o chão estaladiço de ferrugem, coberto de saudade. À frente, o aborrecido fluxo do rebanho da cidade grande: a faculdade, as noites de estudo, as madrugadas ébrias, ai e agora, o primeiro emprego, a subida na carreira, a subserviência ao deus lucro das nove às seis, quase sempre mais, o casamento e os filhos, a falta de tempo, as compras da semana, quase sempre a mais, a casa de sonho, a falta de tempo para sonhar na casa de sonho, os filhos que grandes estão, nem os vi crescer, ai e agora, que o tempo não recua e eu não sei ser feliz.
Até ontem, nunca mais voltara a pensar no Abel.
Dentro da madrugada morna, senti-me beijada por uma melodia terna, íntima, sísmica. De vertigem nas mãos, como se segurasse uma flor em incêndio, reconheci essa voz feita de bruma que tateava as paredes do quarto. Assim arrancada ao sono, pálpebras dançarinas, abeirei-me da janela. Precisava de ver.
E ele ali estava, de facto. Esguio, curvado, barba mendigante, ainda aquela ausência de extensão no solo, essa mutilação dói? Vendo-o de novo a cantar, a mesma entoação de profeta, perguntava-me quantos anos teriam passado, que caminhos (erráticos, errantes, errados?) teria feito, quem o terá escutado até lhe notar as dores na voz.
Fiquei a observá-lo durante horas, a sentir-lhe o pulso à insónia. Fez sol durante toda a noite até que, de súbito, senti uma ideia despontar no ventre. Reparei depois que essa resposta que pari sem esforço me navegava a pele, procurando uma ferida que eu não sabia ter. Percebi,
Não pode ter uma sombra quem foi condenado a viver sob a sombra do mundo.
A manhã chegou. Decidi que era tempo de fugir.