Quando abri a porta, levantou a vista. Encontrei o sorriso debaixo do bigode que ele tinha decidido deixar crescer outra vez. Agora estava mais cinzento e branco, longe das pontas amarelas dos cigarros que há treze tinha deixado de fumar. Olhei-lhe para as rugas, para a expressão, para todo ele: uau, treze anos. Tempus fugit, já os romanos o sabiam. Sorri de volta e fechei a porta atrás de mim. Um brilho nos olhos que me espreitavam por cima dos óculos pendurados na ponta do nariz.
“Rosemary” disse, com uma gargalhada de gozo.
Sentei-me na poltrona castanha que estava ao lado da dele, as duas unidas pelos braços. À nossa volta, só livros. A sala cheiinha de estantes que carregavam histórias, a televisão cinzenta desligada, uma janela ao fundo que guardava demasiada luz, impossível ver além daquela verdade. À nossa frente, a porta amarela de madeira que eu conhecia desde a minha infância e que agora me tinha deixado chegar até ele. Também eu trazia um livro debaixo do braço. Ele voltou à sua leitura e eu imitei-o.
Silêncio.
O passar das folhas.
Silêncio.
Pousei a vida daquelas páginas no colo. Fechei o livro. Contei-lhe que era sobre Fernando Pessoa. Ele não me ouviu, passou mais uma página. Toquei-lhe no braço. Ele olhou-me e eu repeti:
“Estou a ler um livro sobre Fernando Pessoa” e mostrei-lhe a capa.
Ele lembrou-se de uma história qualquer da minha avó. Rimo-nos. Ele perguntou-me como iam os meus sonhos e eu encolhi os ombros, perdida. Não tinha a certeza se queria falar disso até lhe soltar um solilóquio desesperado. Ele ouviu de sobrancelhas carregadas, eu procurava as palavras e era um caos. Deu-me ideias, nenhuma me pareceu fácil, mas prometi pensar nelas.
“Se calhar…” murmurou “se calhar, cada pessoa só tem uma história para contar. Uma só história, que contamos várias vezes, que procuramos contar de forma diferente.”
“Se calhar…” fiquei a pensar.
Voltámos aos livros e ao silêncio. Dentro daquele silêncio estavam todas as perguntas que eu nunca tinha feito e todas as conversas que iríamos ter, sobre arte, e sobre aquilo que eu lia e não compreendia, e sobre os «ses» do mundo. Dentro daquele silêncio estava toda a vida. Ouvi-o a rir-se sozinho. Quando o encarei, ele fitava-me com troça: tinha-se lembrado de uma anedota qualquer.
“É picante”, avisou, como se eu não tivesse 30 anos, como se continuasse com 17.
“O tempo passou”, lembrei-lhe.
Contou, eu corei de vergonha (de que vale termos 30 anos ao pé dos nossos pais?). Rimo-nos, ele com gosto e eu com embaraço.
Na janela, o escuro abria-se. Ele acendeu a luz que estava na mesa ao lado da poltrona. O resto da sala ficou na penumbra, quem sabe que fantasias e realidades se escondiam naqueles cantos? Quem sabe que fantasmas do que ficou por fazer?
Antes de me ir embora, tirei duas folhas dobradas de dentro do livro sobre Fernando Pessoa – mais uma vida que aquele livro carregava. As palavras mostravam um texto meu. Entreguei-lhas.
“Sim. Se calhar, só temos uma história para contar.” Ele aceitou-as como quem conhece tudo. Talvez soubesse que a minha era ele.
Despedi-me com um abraço e ele beijou-me a testa. Não lhe consegui dizer mais nada – há silêncios de ausência que nunca podem ser quebrados. Virei-me devagar e saí da sala. Atrás de mim ficou o que nunca foi, o que nunca será. Foi quando soube que as saudades também são muito feitas de tudo aquilo que poderia ter sido.