Hoje comeria sopa em vez de jantar o seu coração

Deitou os medos pela janela. Foi sem querer, estava a sacudir os lençóis e não reparou que estavam lá encafuados. Espalharam-se pelo chão de terra e ela achou-os frágeis ali no meio do pó, fragmentados em pequenos receios e horrores de vidro que a ameaçavam cortar. Por pouco, não acertava num senhor que passava, um cão fiel e sujo ao seu lado, os dois arrastando o corpo pelo bafo e pela humidade do clima equatoriano. O cão parou, cheirou o chão, lambeu, mas o senhor repreendeu-o: “Quieto, já te disse que os medos dos outros não são para comer.”

Ela saiu de casa, lenço na cabeça, suor na testa, pés rápidos para conseguir apanhar todos os cacos que encontrasse. Não gostava de deixar emoções assim em qualquer lado, e se alguma rajada de vento as levasse e ela nunca mais pudesse sentir nada devidamente? Não, não, queria sentir tudo, não saberia viver de forma amputada, com sentimentos perdidos ou coxos. Agarrou nos medos todos como podia: com as mãos, debaixo dos braços, presos pelo queixo. Voltou para dentro e guardou-os numa caixa debaixo da cama, mesmo ao pé dos sonhos e das fotografias de infância.

Fez as camas, poliu os espelhos, varreu as memórias de um lado para o outro e pensou no futuro. Especificamente, no jantar. Apetecia-lhe algo leve e simples. Na praça já não deveria haver nada, talvez pedisse à vizinha alguma hortaliça que tivesse sobrado para fazer uma sopa. Hoje era um dia novo, estava a limpar a casa e não queria mais comer o seu coração. Era um músculo muito duro, as receitas recomendavam amaciá-lo, mas ela não lhe encontrava o jeito. Tinha mãos com um desamparo muito concentrado, talvez já não soubessem amaciar. Quando comia o seu coração, tinha de morder com muita força e ficava sempre com pedaços enfiados entre os dentes.

Mas antes isso do que as palavras cruéis com que o avô a alimentava. Colocava-as nas papas, no pão, no leite. Ela odiava o sabor, mastigava-as com dificuldade, sentia-as a tornarem-se nós na garganta, mas o avô não a deixava levantar-se da mesa enquanto não roesse todos os ossos das palavras feias. Às vezes, o irmão protegia-a e roía os dela também. Teria sido isso a deixá-lo doente?

Pegou na vassoura e empurrou essas memórias para debaixo da carpete. Algum dia também as sacudiria à janela para caírem com o pó, em voo picado, e rebentarem no chão. Brincou com a dúvida: e se não as apanhasse? E as levasse com um carrinho-de-mão para as afogar num tanque qualquer, num rio, caso fossem muito grandes? Mas claro que não o faria. Imaginou-se a afugentar as lembranças dolorosas para longe e elas a puxarem-lhe um braço, um olho, um rim, a prenderem-se e a levar também as memórias que ela queria, de que ela precisava. Imaginou-se a tornar-se um copo meio vazio, alguém que não ela e tudo o que ela era. Bateu com a vassoura no tapete, mesmo em cima dessas memórias: um pequeno poder, uma vingança inocente. Sim, hoje comeria sopa, deixaria o coração intacto. Algo leve, a combinar com a casa limpa.

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