Pôs a língua de fora e observou-a ao espelho. Estava empapada de palavras, tão pesada e dorida que ela tinha medo que um dia oxidasse e caísse. Raspou-a com a unha. Algumas saíram esfareladas, letras soltas e quebradas, pedaços de O e de G desfeitos. Olhou para a ponta dos dedos cheia daquela cinza. Imaginou as palavras como borboletas mortas, a cinza como pó de asas de borboleta. Com os dentes, arrancou essas palavras das unhas. Duvidou se cuspi-las ou engoli-las.
“O que estás a fazer?”
Engoliu.
“Nada.”
Deitou-se de novo ao lado dele.
***
Serviu-se de uma aguardente ilegal. Espreitava pelo fundo do copo as palavras espalhadas por toda a sala.
Tinha percebido que as que estavam plantadas na língua eram as que caíam maduras do céu da boca ou as que trepavam pelas cordas vocais vindas das entranhas. Começou a senti-las em todo o lado: descolava-as de entre os dedos das mãos, separava-as de entre as pestanas. Se fizesse uma ferida, filtrava-as do sangue ou descosia-as das cicatrizes.
Depois, pendurava-as pelas paredes, dando-lhes tempo para que ganhassem sentido – o tempo de três copos de aguardente. Escolhia-as e deitava-as no papel com cuidado. Esperava que a manhã brilhasse no copo de vidro vazio para o acordar. Só depois conseguia adormecer.
***
Um coração não é válido só quando arde nas mãos de alguém.
Dobrou o papel, passou a língua pelo envelope, escreveu o destinatário: Guerra.
***
Na cama, ele dormia. Ela observava-o de vez em quando. Perguntava-se o que pensaria, o que sentiria. O maior mistério do mundo, a maior surpresa, serão talvez os outros.
Se bem que não tinha a certeza absoluta de querer saber o que ele pensaria, o que ele sentiria. Às vezes, quando ele chorava nos sonhos, ela borbulhava de raiva, lembrava-se de que ele era indigno, inumano, proibia-lhe as emoções. Noutros dias, beijava-lhe as pálpebras molhadas e as olheiras profundas, beijava-lhe o cheiro e o desânimo. O maior mistério do mundo, a maior surpresa, seremos talvez nós próprios.
***
Terás na campa flores que cresceram adubadas pelo teu sangue.
Até lá, deixa que os teus dedos desajeitados aprendam a tecer destinos, a desfazer nós, a trocar as linhas.
As estrelas não querem saber da transcendência de uma respiração contra outra.
Dobrou o papel, passou a língua pelo envelope, escreveu o destinatário: Guerra.
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Ele acompanhava-a até ao marco do correio. Ela caminhava observada pela arma dele, guardada por ele, um dos defensores do país. Há quantos anos estavam em guerra? Com quem? Ela soltava a carta na ranhura, espécie de mundo paralelo, de transporte mágico.
Destinatário: Guerra.
Não se despediam. Nem sequer se olhavam.
Ela deixava para trás o seu soldado-bilhete para a liberdade, para pequenos privilégios como escrever cartas.
E assim que ela entrava de novo em casa, tinha de correr para o lava-loiças e vomitar. Respirava, bebia água e, depois, passava os dedos pelo meio do vómito, afastando o ódio e a saudade, procurando as palavras que pareciam mais inteiras. Como se só essas fossem capazes de salvar o mundo.
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Não acenamos. Não nos cabem mais despedidas nos dedos. Já não existe espaço suficiente nas nossas bocas, nos nossos corpos, nos nossos olhos para esse amargo.
Dobrou o papel, passou a língua pelo envelope, escreveu o destinatário: Guerra.
Numa loucura, escreveu o remetente.
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Tremia. Abriu o envelope.
Remetente: Guerra.
Escondeu-o debaixo do colchão e pensou naquela folha em branco durante o ritmo tosco marcado pelo cansaço dele.
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Viu-o a afastar-se do marco do correio. Deixou que ele dobrasse a esquina. Avançou com a segurança de quem não tem nada a perder. Pousou a caixa de cartão ao pé do marco do correio.
Escreveu no destinatário: Guerra.
Fechou a caixa por dentro.