“Me duele la vida”, sussurrava baixinho.
O seu sotaque cubano, quente e escorregadio, quase ronronado, numa voz tão normal quanto cheia de dor. O corpo nu em cima da cama, e ela a fumar um cigarro depois de termos feito amor. O fumo a sair-lhe tranquilamente da boca, o olhar cego a ver lugar nenhum, o corpo suado, a voz rouca enquanto me confessava que lhe doía a vida. Eu não entendia como é que o êxtase se tinha transformado tão rapidamente em melancolia. Ainda eu tinha arrepios de prazer e alegria que perduravam do momento anterior, e já ela pensava em existências e questões tão profundas. A seguir, eu beijava-a intensamente. Não sei se de sentir uma grande paixão ou de querer fazê-la esquecer. Ela sorria-me malandra, com cara de menina tímida e com covinhas nas bochechas, como se nada tivesse acontecido. Dizia “ai, papi” e deixava-se levar de novo pelas minhas carícias.
Hoje talvez entenda o que ela queria dizer. Na altura não entendia; na altura, era um rapaz jovem invencível que fugia da profundidade dos sentimentos e procurava a fugacidade do prazer. Hoje, homem adulto, também a mim me dói a vida. Por motivo nenhum. Não sei se a Merche tinha algum motivo além de ser artista. Os artistas têm sempre uma dor de vida intensa, uma sombra negra no seu íntimo, uma certa tristeza na personalidade, sem ninguém compreender bem porquê. Nem eles. A Merche não compreendia. Eu também não.
Quando oiço o sotaque cubano, lembro-me sempre dela. Já passaram vinte anos, já conheci muitos cubanos, mas a primeira associação que faço é sempre à Merche. Conheci-a a falar português, embora com aquele sotaque cheio de mel e calor. Só falava português com estranhos, porque quando se tornava íntima de alguém – fosse em que sentido fosse – mostrava a sua alma na sua língua nativa. Acreditava que as almas não precisavam de entender o idioma, porque o metafísico e a emoção transcendiam os significados limitadores das palavras. E quem a visse falar, rir ou simplesmente ser, compreenderia exactamente o que ela queria dizer.
Recordo-me da Merche pensativa e filósofa, triste, artista, a rolar os olhos de prazer, boca entreaberta, brilho na cara. Foi a única Merche que conheci, aquela que ela se (ou me) permitiu conhecer. Um dia, telefonou-me e anunciou “tengo cáncer”. Uma doença internacional. Não soube o que dizer; a nossa relação era puramente física, talvez roçasse uma amizade, gostávamos de estar juntos, de falar, de sexo. Não soube o que dizer, mas se ela me tinha contado, não poderia simplesmente ignorar. Perguntei o que achava correcto: “Queres vir viver comigo, e eu cuido de ti?”. Tive medo da resposta. Não era o que eu queria, claro, e devia conhecê-la o suficiente para saber que também não era o que ela queria: “No me insultes”, respondeu. Fiquei aliviado. Ela desligou o telefone, e nunca mais me atendeu.
E eu nunca mais a vi.
Alguém me fala em Cuba e ela corre para a minha mente como se eu lhe conhecesse ainda a pele. Pergunto-me onde estará. Pergunto-me se, por algum milagre, sobreviveu. Algo me diz que não. Algo me diz que ela se afastou para definhar sozinha, não permitindo a ninguém essa visão degradante. Talvez ela própria não se permitisse ver dessa forma tão desconcertante e diferente de tudo o que ela era e representava, acabando com o próprio sofrimento, dramática até na morte. Ou talvez tenha voltado para Cuba, para um grande amor que lá deixou, e lhe tenha permitido essa intimidade derradeira, a de se mostrar vulnerável e lhe morrer nos braços.
Gosto de pensar que foi feliz nos seus últimos momentos. De brincar com a ideia de que ela ainda pisa o mesmo chão que eu, algures, e que só não me procurou por orgulho. Até que já me esqueceu, mas que continua a existir na mesma dimensão que eu. Gosto de a imaginar a dançar, a pele cor de canela a brilhar ao sol, a concentração do seu olhar a pintar quadros. Gosto de a lembrar com aquele sorriso infantil com covinhas. Feliz.
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