Longe da vista, longe do coração

A guerra é a continuação da política por outros meios.

Clausewitz

 

Em fevereiro assistimos à concretização de uma ameaça que se tornava cada vez mais real e que coloca em risco a soberania da Ucrânia. De um modo ou de outro, toda a sociedade uniu-se num esforço humanitário de ajuda, como não se via desde há uns anos. E isso é muito bom!

Os líderes políticos ocidentais também se uniram no repúdio e aplicação de sanções para penalizarem a Rússia e seus dirigentes políticos. A guerra, qualquer que seja é hedionda e quem sofre são os civis.

Os meios de comunicação, possivelmente antevendo um certo cansaço dos espectadores sobre notícias relacionadas com o COVID e, por se tratar de uma guerra nas fronteiras da União Europeia e NATO, fazem a cobertura quase horária da guerra. A imagem, na sociedade do espetáculo tem um poder mobilizador hipnotizante.

Quem não se compadece, quando se escuta notícias de alguém que sobreviveu à Grande Guerra Patriótica (Segunda Guerra Mundial como é conhecida nos países do leste europeu) e não conseguiu resistir à invasão russa? Ou dos corpos que se confundem com as ruínas dos edifícios destruídos pelos mísseis russos? Como não ficar indiferente, quando vemos filas de pessoas com os olhares lassos dos horrores que viram?

No entanto, como a citação que dá o mote a este texto, nas relações internacionais tudo gira à volta da conquista de objetivos políticos, uns mais transparentes do que outros. E estes objetivos políticos, na grande maioria das vezes, refletem os anseios e aspirações dessa sociedade. De outro modo, os objetivos políticos são inculcados na população através da ideologia que se pretende dominante, sendo os meios de comunicação um dos canais privilegiados para esta difusão. O que é transmitido nos canais noticiosos ou escolhido para publicação em jornais é disso prova.

A guerra na Ucrânia já provocou cerca de 2 milhões de refugiados, 1200 mortos e perto de 2 mil feridos, uma tragédia! Mas uma tragédia que se soma outras ainda maiores. A guerra do Iémen já provocou 233 mil mortos e é responsável por 2,3 milhões de crianças estarem em desnutrição aguda; num país que já era pobre a guerra criou ainda mais dificuldades no acesso à água potável ou no acesso a cuidados médicos, classificado pela ONU como a pior situação humanitária, não na península arábica, mas no mundo!

O leitor atento dirá que o conflito tem 10 anos (o que já de si revela uma incapacidade e falta de vontade de outros países para lidarem com esta guerra), por isso vejamos um conflito mais recente: guerra civil na Etiópia. Milhões de pessoas deslocadas e crianças que morrem de fome ou estão em risco de subnutrição, tal como no Iémen. Também na Síria, milhares de casas foram destruídas por mísseis russos, mas isso não importa, afinal estavam longe de mais e sem recursos úteis para as economias ocidentais.

No Afeganistão, após a retirada da coligação ocidental e com a tomada de poder pelos talibãs, as pessoas estão à sua mercê, tendo que vender órgãos para conseguirem obter algum dinheiro. Mas isso não impressiona, afinal já lá não temos presença militar. A política virou noutra direção: somos energeticamente dependentes da Rússia e a Ucrânia é mais um país onde os países ocidentais jogam a sorte num xadrez em que são as pessoas que sofrem as consequências das rivalidades de egos. Os países que estão aqui mencionados são pobres e irrelevantes (leia-se: pobres em recursos naturais) para os líderes ocidentais se preocuparem. E isso reflete-se na diferença de atenção que estes países têm nos meios de comunicação.

A guerra na Ucrânia colocou a descoberto a dualidade com que os Outros são encarados. Aceitamos refugiados, mas não todos; queremos paz na Europa, mas não no mundo; conseguimos nos mobilizar e desdobrar em facilidades burocráticas ou viagens para trazer pessoas para a paz, mas os outros tipos de refugiados são repatriados. A guerra é mais um instrumento da política e dos seus objetivos. Estes objetivos nem sempre são claros, mas é percetível a dualidade de valores com que trata os diferentes palcos. No fim, é tudo uma questão de política.

Não sou um pessimista, mas sonho pelo momento em que vejamos qualquer pessoa, onde quer que esteja, como mais um elemento da família humana; onde vejamos um semelhante que, alguém que sofre e que também sorri; alguém que tem valor intrínseco em si mesmo e não em função do país em que vive.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico
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