Ameixadas e tomates – parte III

– Oh, Lurdes… conte-nos cá o que acha desta coisa do… vamos lá ver como digo isto… tira e põe! – Augusta encolheu os ombros, pendeu a cabeça para o lado direito e franziu a testa. Faz disto o desconforto causado pelas amarras linguísticas de temas interditos a liberdade.

– Dona Augusta, Dona Augusta… ainda anda no estudo do sexo?

– Que susto, João Miguel! Tu não me arrelies!

– Não me diga que não contava com a minha presença à janela neste que deve ser o prédio mais bem-falante da zona. Logo na conversa mais interessante de todas.

– Se não vens ajudar aos estudos, recolhe-te já! – disse Felismina de olhos arregalados para que se entenda a importância da ocasião.

– Não sejas pervertido que é isto tema sério, João Miguel! – acrescenta Augusta.

– O sexo, os pervertidos e as perversões… Não tinha dado todos estes dias de clausura para sobre isto falarmos, senhoras Donas e caro jovem – constatou Lurdes.

– Que o Senhor nos perdoe os dizeres libidinosos de agora e os caminhos lascivos de uns e de outros – Augusta fitou João Miguel e Lurdes.

– Agora que se deu o desconfinamento, tudo o que são catos nos parecem gerberas, ainda eu a convido para jantar Dona Augusta. O magret de pato pareceu-me bem!

Lurdes não aguentou a gargalhada. Felismina reprimiu-a, mas os seus fartos peitos em consecutivos pulos deram conta do riso que por dentro ia. Augusta petrificada encarnava um tomate chucha. Lurdes apressou-se a retomar a ordem:

– Fantasmas. São fantasmas os conceitos de perversões e pervertidos. Não há um rumo universal na sexualidade humana, ainda que o nosso imaginário de crenças o tenha construído. Vamos lá deitar umas pitadas de niilismo nesta análise da sexualidade.

– Que ingrediente é esse, Lurdes? – inquietou-se Augusta, cozinheira de mão cheia, que não conhecia disto.

– Para aquilo que aqui nos importa, é uma corrente filosófica que rejeita verdades absolutas. Somos todos imorais presos num imaginário de moralidade. Somos todos pervertidos, não duvide, Dona Augusta.

– Tome conta com o que diz, Lurdes! Esta agora, que despautério. Acaba-se já o estudo!

– Ai, os tomates! Não seja assim, Dona Augusta, meu belo “cato gerbera”.

– Uma ideia erótica não passa a ser repugnante ou imoral apenas porque as Donas Augustas do bairro não a pensaram.

– Olha, isto é que foi bem-dito! – Felismina libertou-se, afirmou-se, sacudiu-se das amarras.

– Mina!!! Tem vergonha! – repreendeu Augusta – Também… do que me espanto! Não me posso agora esquecer que aquela bibliografia escandalosa é teu pertence.

– Até já te deu a curiosidade sobre os dizeres da bibliografia, as ideias modernistas da Lurdes, sobre o sexting e a internet do João Miguel. Vai-se a ver e é essa curiosidade uma perversão.

– Dona Augusta, agora que nos desconfinamos, vamos às ameixadas. Se me achar cachopo ajudo-a a encontrar a parelha ideal.

– Tem de ter os pés bonitos. Que se há coisa que eu gosto desde moça é de pés aprumados.

Gargalharam agora em conjunto. Há pouca coisa de melhor que conversas inquietantes.

Share this article
Shareable URL
Prev Post

Gerundio

Next Post

Desculpa pai, desculpa mãe

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This site uses Akismet to reduce spam. Learn how your comment data is processed.

Read next

Rosa Parks

Um gesto que mudou um sistema. Pode ser uma frase que lhe assenta que nem uma luva. Assim foi o que Rosa fez,…