Para que serve isso que levas debaixo do braço?

Os livros fazem parte da minha vida desde que me lembro de ser gente. Dos contos dos irmãos Grimm aos livros da Alice Vieira, do Harry Potter de J. K. Rowling à Sofia de Jostein Gaarder, a minha infância e adolescência foram povoadas pelas personagens das histórias que lia.

Ler antes de dormir tornou-se um ritual, o ansiolítico de que preciso para me desligar do dia que passou e ganhar espaço mental para descansar. Nas fases mais negras da minha vida, ler proporcionou-me o escape perfeito à realidade.

Se pesquisarem por exemplos de literatura, vão encontrar sugestões como Shakespeare, Dickens, Austen, Cervantes. Por outro lado, se abrirem o Tik Tok ou Instagram, vão encontrar uma série de novos autores que enchem as redes sociais (e as prateleiras das livrarias) com os temas que interessam às gerações mais novas, como a saúde mental, a representatividade e a inclusão.

Ainda assim, mesmo com os fenómenos do booktok e do bookgram, ainda há uma grande parte da população que para quem a literatura está vedada – não porque seja inacessível, mas porque não lhe é apresentada com todas as suas vantagens e benefícios.

Afinal, para que serve a literatura?

Construir hábitos de leitura é fundamental

Um cartoon do locutor Hugo Van Der Ding põe duas personagens numa conversa inusitada. “Que clutch tão gira”, diz uma. “É um livro…”, responde a outra. Adoro este cartoon, porque me faz rir e me recorda de um sketch que vi, há muito tempo, em que uma “pessoa comum” pergunta a um intelectual: o que é isso que levas debaixo do braço?

Para uma parte da população, o primeiro encontro com a literatura é na escola – e é aqui que o problema começa. Não tenho competências para dizer se os livros de leitura obrigatória são ou não adequados em termos programáticos. Contudo, tenho a experiência, enquanto estudante, para dizer que não são de todo apelativos para as camadas mais jovens da população.

Lembro-me de olhar para o Memorial do Convento e revirar os olhos – porque era adolescente e tinha a mania que era irreverente, é certo, mas também porque era uma obra escrita por um autor que tinha nascido sessenta e cinco anos antes de mim, num contexto completamente diferente, com uma experiência completamente diferente. Nunca o li.

Conseguir criar empatia com as personagens (e, consequentemente, com a história) é fundamental para criar uma relação duradoura com a literatura. Mais tarde, vem a capacidade de relacionar temas, interpretar mensagens e, através da literatura, construir a nossa própria versão da realidade. Podemos dizer que o leitor é como o vinho: vai apurando ao longo do seu caminho através das histórias.

Enquanto sociedade, continuamos a tratar a literatura como um privilégio reservado às elites. Com tantos anos de evolução, e não obstante a democratização da educação e do acesso à informação, continuamos a achar que a literatura é o néctar dos iluminados. Como se nos desse gozo que nos perguntem para que é que serve isto que levamos debaixo do braço.

Continuamos a ter dificuldade em aceitar que a literatura, tal como tudo o resto, é moldável às necessidades e interesses da geração que a vive e que há vida para além dos clássicos. Continuamos a tentar enfiar o século XX pela garganta da geração que nasceu com um telemóvel no bolso.

Para que (me) serve a literatura?

Numa entrevista ao Público, Javier Cercas disse que “a literatura serve para seguirmos as nossas próprias obsessões”. Já Saramago afirmou que “a leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em um lugar”. Eu concordo com ambos. A literatura serve-me, em primeiro lugar, para construir uma realidade alternativa. Uma espécie de metaverso, mas sem máquinas nem realidade virtual, só papel e tinta.

Mentiria se dissesse que aquilo que leio não serve também a minha própria agenda e, como diz Javier Cercas, as minhas próprias obsessões. O fascínio que a literatura de horror me provoca só pode encontrar explicação na minha necessidade de entender a morte e a vida depois dela.

Mas voltemos à pergunta: para que serve a literatura?

Creio que a resposta seja diferente para cada leitor a quem coloquemos a pergunta. Haverá quem leia para compreender o mundo, quem leia para se compreender a si mesmo. Haverá quem leia porque quer compreender o passado e quem leia para tentar prever o futuro. E há quem lê por puro entretenimento – sim, a literatura também serve apenas para entreter.

No fundo, a literatura serve para responder a perguntas que talvez nunca venham a ter resposta. E, se é possível que estas perguntas sejam as mesmas desde o início da humanidade, divergem bastante na forma. Há toda uma geração de leitores a acordar. Por favor, não lhes digam que têm de ler os clássicos para saber o que é a literatura. Ou corremos o risco de criar uma geração que pergunta “para que serve isso que levas debaixo do braço?”.

Nota: este artigo foi escrito seguindo as regras do Novo Acordo Ortográfico
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Comments 4
  1. Olá, Lídia!

    Excelente artigo de opinião.
    Permite-me só fazer um reparo: não me parece que a desculpa ou justificação para a incompreensão do que é a literatura apresentada nas escolas, tenha como motivo ler os clássicos. Confundir gostos pessoais com aquilo que nos promove o sentido crítico, é talvez um pouco redutor do que é a Literatura. O que nos é oferecido nos dias de hoje, com o PNL e a promoção da leitura nas crianças e jovens, aumenta a curiosidade e o número de leitores, podendo ou não facultar-lhes a compreensão do texto. Isso não existia no meu tempo. Muitas vezes, transporta-nos para um mundo outro que, se não se souber como, aí se pode permanecer. Penso que mais grave nas novas gerações do que perguntar: “o que é isso que levas aí debaixo do braço?”, é não perguntarem de todo – mesmo que os seus hábitos de leitura sejam apenas por mero entretenimento, ou obrigatória, nos programas educativos. E, pior ainda, são as gerações “mais antigas”, com a sua mentalidade menos aberta, castradoras das novas gerações. Como exemplo, um dia desta semana, uma colega disse-me que a filha, adolescente, havia mostrado interesse no meu último livro de poesia. Ao que ela respondeu que era um livro de poemas, inadequado para a sua idade, sem história, e que fazia pensar, pelo que não era o melhor para a jovem.
    E, como é referido: a literatura serve para fazer reflectir, pelo que os Clássicos da Literatura são importantes. A Poesia ainda mais. Responder a perguntas que talvez não tenham resposta é promovido pelos Cânones da Filosofia e, aqui entram os Clássicos do pensamento.
    Ainda assim, a resposta difere sempre de pessoa para pessoa. 🙂

    1. Carmen, obrigada pelo teu comentário. Não tenho conhecimento aprofundado no que tem sido o impacto do PNL nos hábitos de leitura (o meu filho mais velho está ainda na primeira classe) mas, do que já conversei com pais de jovens e os próprios jovens é que o espaço dado a obras “não clássicas”, digamos assim, depende muito do professor, da escola, do que já se avançou na matéria ou não. Ou seja, os clássicos são obrigatórios e têm de ser lidos a todo o custo, porque fazem parte do programa. Os outros livros, aqueles que lemos por gosto, ficam para se der. Posso estar a ser injusta, atenção, mas é esta a leitura que tenho. Concordo, claro, que os clássicos são importantes. O que acho é que, se nos limitarmos a eles, perdemos uma fatia dos jovens leitores que não estão ainda preparados para os ler 🙂

  2. Gostei muito do teu artigo.
    Penso que o melhor seria apresentar nas escolas os clássicos e também algo que fosse de encontro ao presente.

    1. Concordo, Marília. E começar a apresentar a leitura de livros desde cedo, não como uma obrigatoriedade escolar, mas como um prazer!

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