Finalmente o mar de campos dourados pelo trigo são cortados por casas. O fim de uma longa caminhada. Dimas pisa pesarosamente o caminho sob os seus pés, olha para trás e nada vê da sua vida. Nada havia para ver. Acabara de conquistar a maioridade e já se encontrava a recomeçar a viver. Viver uma vida que ainda nem começara.
Procurava distanciar-se da memória daquele dia em que chegou a casa vindo da escola. A polícia instalara-se no jardim. A curiosidade extinguiu-se, quando alguém lhe contou que ele era agora órfão. Desde então não mais conseguiu apagar a imagem dos seus pais prostrados no chão da cozinha. Os corpos perfurados, o sangue espesso, a ausência de vida. E da sua irmã que naquela manhã não chegou a acordar, também esfaqueada sem sinal de humanidade. Nunca se soube quem cometera crime tão hediondo. Dimas tornou-se um rapaz frio e distante, uma alma sem vida, suportada apenas pela rotina do orfanato. Mas agora era livre, tinha que ser ele apenas no mundo. Deixou tudo o que conhecia e agora chegava àquela povoação que viu os seus avós nascerem, segundo lhe disseram.
Nada sabia e ninguém o conhecia. Isso permitiu-lhe sentir um pouco da existência que a todos é comum. Alugou um quarto e conseguiu um trabalho nos campos de trigo. Algum tempo passado conheceu Alegra. Rapariga jovem que se habituara a ver correr pelos campos expressando alegria sem qualquer razão aparente. Ele procurou-a, encantado com a sua beleza de jovem rapariga a quem a vida tudo tem para oferecer. Apaixonaram-se e casaram, tão jovens ainda. Ninguém lhes ensinara o que era viver em comum. Nem ele nem ela sabiam o que a felicidade lhes podiam trazer. Apenas se reencontravam, quando ele regressava do campo ao fim da tarde. As noites viviam em silêncio, porque não tinham nada das suas vidas a revelar.
O brilho dos olhos de Alegra foi-se perdendo. O seu sorriso foi-se apagando. A alegria deixou de fazer sentido. Dimas, sempre fechado na sua ausência interior, assistiu a vida a afastar-se da sua casa. A criança, seu filho bebé, nunca chorava. Passava os dias a gesticular tentando agarrar o vazio. Nunca sorria, porque nunca viu um sorriso na sua curta vida. Alegra amava-os, mas não os sentia. Ninguém sentia o outro ali, no mesmo espaço. Dimas esquecera-se o que era ser feliz e sem procurar a felicidade, arrastou o seu lar para a vivência sombria em que mergulhava todos os dias ao acordar.
Um dia, a meio da tarde, foram procurá-lo. Três homens, o seu sogro numa vertigem de lágrimas, dois polícias. Dimas logo percebeu o que ali faziam. Deixou-se cair no chão com as memórias a pesarem-lhe uma vida inteira que teimava em não se iniciar. Alegra fora encontrada tombada junto ao berço do seu filho, mergulhada numa poça de sangue, o corpo rasgado por incontáveis marcas de uma lâmina fria. Também o seu filho.
Uma dor profunda fulminou-o para apenas se recordar que estava esquecida. Quis fugir e mais uma vez partiu, procurando um local em que viver lhe fosse possível. Consigo apenas levou as idas memórias e a sua faca de cozinha, de cabo gasto e lâmina avermelhada.