A vida tem tanto de interessante como de estranho. Todos nascemos e um dia teremos de morrer. Ainda não se conhece a fórmula da imortalidade, por isso, o entretanto é preenchido conforme se pode ou se quer. Enquanto muito jovens as crianças criam mundos seus e elaboram aventuras que, mais tarde, poderão ser úteis para as decisões tomadas. O mundo do faz de conta é tão importante quanto o verdadeiro, mas tudo tem o seu tempo e os ensinamentos são sempre de grande valor.
Mais tarde a vida tem de ser ganha a pulso e existem as chamadas profissões. Umas são mais apetecíveis do que outras, mas o dinheiro não cai do céu e, por isso, é importante trabalhar. Há quem consiga retirar prazer do que faz e juntar o útil ao agradável, outros simplesmente seguem rotinas e cumprem horários para que nada falte em casa e a vida continue sem perturbações. Estes estão em maioria o que não invalida que sejam bons profissionais.
Anthony Bourdain não pertencia à última categoria. Para os que não estavam mais atentos este nome é bem-sonante no mundo televisivo. Ele é o maior protagonista de programas sobre culinária com um carisma que mais ninguém consegue igualar. Não só nos presenteia com inúmeras receitas como nos leva nas suas viagens em torno do planeta. O conhecimento que nos transmite é de tal forma intenso que se pode afirmar que somos uma espécie de compinchas das suas aventuras.
São viagens culturais e civilizacionais que servem para conhecer o mundo real onde vivem pessoas verdadeiras, falando sobre a sua vida e a cultura local. Aos seus olhos todos têm encantos que merecem ser divulgados. Aproveita estas pequenas confidências para mostrar tudo o que serve de cenário. São os recantos profundos dos países que ele busca e a autenticidade de quem lá habita. Sem vedetismos nem convencimentos, arrisca tudo em prol duma enorme mais valia.
Uma viagem com o seu pai, em muito jovem, despertou-lhe o interesse pelas belezas do mundo gastronómico e físico. França estava no topo e ironicamente será o destino final. Começou como cozinheiro, mas a aventura falava mais alto e tornou-se uma verdadeira paixão. Trabalhou em maus e bons restaurantes, tirando sempre proveitos. Casou-se e divorciou-se. Escreveu romances e amou e desamou. Sobretudo a si próprio que buscava de forma infinita e não encontrava.
Polémico quanto baste, ousou falar dos preparativos das refeições e do seu lado obscuro e menos delicioso, aquele a que todos parecem fechar os olhos e ignorar. Falou de cadáveres e de especiarias, de bactérias e falta de higiene, das doenças que a mesma pode provocar. Sempre sem papas na língua, porque de comida percebia ele. Rapidamente se tornou um guru e conseguiu um enorme séquito de seguidores. Uma pessoa genuína.
O facto de se ausentar de casa pode ser uma espécie de trauma. Ser nómada na época do sedentarismo não será fácil. Casa é o nome que se dá onde nos sentimos bem e ele estava 200 dias fora da que chamava sua. Deve ter perdido a noção de lar e adaptou-se a todas as mudanças. Aparece sempre rodeado de amigos, mas será assim? Não serão somente conhecidos que lhe preenchem um enorme vazio? Tão só no meio de tanta gente.
Para muitos esta pode ser a profissão de sonho, aquilo que desejam para uma vida, mas verifica-se que apresenta um custo demasiado elevado. As referências, os momentos de reflexão, o aconchego dos seus, o seu lugar preferido fica sempre tão longe e o mediatismo não cobre os sentimentos verdadeiros. Não é seguro andar tão desacompanhado de si mesmo. Curiosamente ele que ensina a não ter medo do que não se conhece e a avançar com garra é o mais receoso de todos. Este é o ser humano.
O dia 8 de Junho será a marca definitiva das suas viagens. Chegou ao fim da linha e escolheu França, onde tudo começou, para finalizar o seu percurso. Foi ele que decidiu acabar de respirar. Uma decisão que será sempre comentada, mas que só ele saberia dar a resposta adequada. Surge o nome de depressão como justificação da sua atitude. Um rótulo que nunca lhe assentaria pois ele era alguém outside the box.
A depressão é definida como um estado subjectivo de tristeza ou infelicidade acompanhado por pensamentos negativos acerca de si, do seu passado e do futuro. É uma perturbação mental, mais concretamente do humor que afecta não só o cérebro como o corpo. Não é fatal pois tem tratamento e a ajuda profissional é sempre importante. Os sintomas podem ser enganadores ou até o próprio estar em negação por isso é necessário o máximo de cuidado.
O suicídio é radical. Por muito que se estude o assunto, que se diga que pode ter sido assim ou de uma outra forma, é sempre um campo minado, porque quem o praticou deixou de estar acessível para esclarecer. São somente especulações. Nada mais. O certo é que a pessoa deixou de existir. É um tema tão sensível que dói sempre que é aflorado. Foi a derradeira viagem ao desconhecido.
Pode dizer-se que este homem tinha tudo o que os outros invejam, mas talvez lhe faltasse o mais importante, a paz interior, a verdadeiro amor dos seus, o sentir-se bem acarinhado. O certo é que para quem parecia ter tudo não tinha nada. E essa enorme falta arrancou-lhe o íntimo, talvez com o nome de alma, levando-o a desistir de tudo. Olhando para ele nada se notava, mas é mesmo assim que este mal funciona, muito pacata e sorrateiramente.
Alto, magro e bastante atraente, apesar de não se coibir de provar tudo o que lhe colocavam no prato, era o ídolo de milhões de pessoas que o seguiam como se estivessem ao seu lado. Culto e interessado poderá ter chegado a um ponto de ruptura e de cansaço onde nada mais o desafiasse. Poder-se-ia dizer que tinha amigos, mas seria mesmo assim? Um amigo é um tesouro precioso, um bem raro que nem todos conseguem ter.
O que pode ser um objectivo de vida para uns pode nada dizer a outros. Este homem era um ícone e poucos se interessavam por saber quem ele era. O que importava era o que mostrava, o que comia e com quem estava. Conheceu toda a gente com importância relativa e de que lhe serviu isso? Perguntaram-lhe como se sentia? Deram-lhe a mão? Gostavam mesmo dele ou aproveitaram-se do seu mediatismo?
E agora? Quem lhe segue os passos ou ele era tão peculiar que não se encontra sucessor? Será uma tarefa acrescida para quem se aventurar nesse contexto. No entanto somos os seus herdeiros e o seu legado está nas nossas mãos. Com ele fomos até aos confins do mundo e com ele vamos até ao nosso mais íntimo para verificar se está tudo como desejamos ou se temos a capacidade de o podemos modificar. Esta é a nossa viagem e não a podemos partilhar com mais ninguém.