A vida no ecrã

Vivemos um romance virtual sem compromissos e com possibilidades de edição (até daquilo que somos). Estamos viciados numa ilusão de conectividade total que nos desconecta da realidade.

Os cafés com amigos transformaram-se em noites à frente do ecrã ou numa chávena acompanhada do viciante telemóvel, as longas conversas num constante teclar e o riso numa cara amarela sorridente. A tecnologia tornou-se numa espécie de melhor amiga que nos permite estar presentes mesmo quando estamos ausentes, mas também numa inimiga que nos torna ausentes mesmo na presença.

“Estamos a habituar-nos a uma nova forma de estarmos sozinhos e juntos”, afirma a psicóloga Sherry Turkle. A atenção volta-se cada vez mais para os dispositivos electrónicos. Chega-se a ignorar aqueles que nos fazem companhia para prestar atenção ao telemóvel. Este comportamento, hoje, é resumido numa única palavra: phubbing. O termo cunhado pelo australiano Alex Haigh foi popularizado pela campanha Stop Phubbing, que pretende eliminar esta conduta.

“As pessoas querem estar umas com as outras, mas também noutro lado, ligadas a todos os diferentes sítios onde querem estar”, explica Sherry Turkle. Há uma necessidade constante de estar simultaneamente em múltiplos lugares, que nos faz perder o momento que experienciamos. Já, em 2014, se ouvia numa campanha da Coca-Cola: “os social media são fantásticos, conectam-te ao mundo e às pessoas que amas (…) mas há momentos em que te afastam da vida real”. Por isso, neste spot publicitário anti-phubbing, a marca cria o “Social Media Guard” para os viciados em dispositivos tecnológicos. O produto não está à venda, nem é real, mas a mensagem é clara: o uso excessivo da tecnologia é um problema. É preciso despertar para o mundo real.

Esta não é, contudo, a única marca a denunciar este problema social. A Super Bock também o fez, através de uma mensagem que, ironicamente, se tornou viral nas redes sociais. Partindo do mote “leva a amizade a sério”, a campanha descreve na perfeição o actual cenário. “Habituámo-nos a adiar encontros cada vez com menos caracteres, conversamos com ecrãs, rimo-nos com as teclas e fazemos likes para enganar a saudade”, ouve-se a meio do vídeo. Esquecendo por um segundo o objectivo final do spot – aumentar o consumo do produto -, consegue-se observar um nobre apelo ao convívio.

https://www.youtube.com/watch?v=GM6r4ESKMjc

“O que é que se passa com a amizade? Se os amigos são tão importantes na nossa vida, como é que temos tão pouca vida para os amigos?”, pergunta a voz do anúncio. Porém, podemos, ainda, fazer outra questão: o que há de errado numa boa conversa? “Passa-se em tempo real” e “não se pode controlar o que se vai dizer”. Estas foram as respostas obtidas pela psicóloga Sherry Turkle, quando fez esta pergunta.

Num mundo virtual, “temos a possibilidade de editar e isso significa que podemos apagar, (…) que podemos retocar, a face, a voz, a carne, o corpo, não de menos, não demais, na medida certa”, refere Sherry Turkle. Assim, sentimo-nos ligados e capazes de controlar a situação vivida, porque nos apresentamos como queremos.

Para o sociólogo Zygmunt Bauman, existe, ainda, outro tipo de controlo que nos deixa confortáveis. Nas redes sociais é fácil evitar a controvérsia. Muitos usam-nas “para se fechar no que eu chamo de zonas de conforto, onde o único som que escutam é o eco das suas próprias vozes, onde o único que veem são os reflexos das suas próprias caras”, afirma numa entrevista ao jornal El País.

E, neste novo espaço, de acordo com o sociólogo, as habilidades sociais não são necessárias, porque é fácil apagar e adicionar amigos. Aliás, segundo Zygmunt Bauman, a atractividade deste novo tipo de amizade é precisamente a facilidade de desconectar. Basta pressionar “delete” e “em vez de 500 amigos terá 499, mas isso será apenas temporário, porque amanhã você terá outros 500 e isso mina os laços humanos”, explica.

A verdade é que, como aponta Bauman, “nós não nos relacionamos – conectamo-nos”. Vivemos um romance virtual sem compromissos e com possibilidades de edição (até daquilo que somos). Estamos viciados numa ilusão de conectividade total que nos desconecta da realidade. Vivemos entre o virtual e o real, entre a vida e o ecrã.

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